Métodos populares de persuasão

Dia desses eu fui no postinho de saúde aqui perto de casa, e, como a espera é grande, observei as pessoas desse país muito louco chamado Brasil.

Uma senhora é chamada ao guichê e tenta marcar consulta com o dentista. A atendente afirma que não tem horários e nem sequer previsão de abertura de nova agenda, ou seja, nada de dentista.

A senhora, então, afirma que é paciente do dentista e do postinho há anos, que fez tratamento dentário ali (nesse momento ela tira a máscara e mostra os dentes pra atendente). Ela diz também que aquele é o melhor postinho que ela já foi, que ele é ótimo mesmo, que tem muitos postinhos mas aquele é o melhor. Nisso passa uma outra senhora que, escutando a conversa, endossa a fala da primeira senhora dizendo que o que ela diz é verdade.

A atendente faz lá seu trabalho, e enquanto ela busca alernativas a senhora continua seus elogios à unidade básica de saúde do bairro. Então a atendente entrega um papel à senhora e diz para ela ir ao corredor à direita. A senhora, sem entender se tinha conseguido ou não sua consulta no dentista, pergunta: “e a consulta?”. A atendente responde: “é agora mesmo, senhora, pode ir lá.”

Método de persuasão devidamente anotado pela observadora.

A elegância da população em situação de rua

Já faz um tempo que tenho reparado na elegância das pessoas em situação de rua. A maioria das pessoas que vejo nesta condição aqui na cidade de São Paulo, e não é pouca gente, é muito educada, mais que educada, é elegante.

Esse fato é instigante – da elegância justamente naquelas pessoas que julgamos incivilizadas, destituídas de qualquer valor, de qualquer luxo – numa sociedade que valoriza as pessoas pelo que elas têm, e não pela sua ética, altruísmo e por suas atitudes. E não sejamos hipócritas, a falta de higiene, de intimidade, e da possibilidade de abrigar-se – enquanto direitos básicos, é sim fator decisivo para a maneira como essas pessoas são vistas e tratadas pela sociedade.

Vários motivos para esse fenômeno, o da elegância das pessoas em situação de rua, me ocorrem…

A violência estatal (da ordem, que só é eficaz na repressão aos mais fracos e vulneráveis e na proteção ao patrimônio) e a violência da sociedade, com seu nojo, seu desprezo, seu julgamento e seu higienismo letal geraram uma população de gatos escaldados, de sobreviventes ao pior do capitalismo cristão. Pessoas que sabem o peso da lei, do abuso, da desvalorização da vida, da falta de empatia, do frio, da fome, do medo. Precisam ser verdadeiros lordes e damas para não serem destratadas. Precisam se superhumanizar para serem visíveis, quando uma sociedade consegue apagar da paisagem pessoas sem nem usar inteligência artificial. Não podem assustar, porque, para essa população, assustar é crime. Para essas pessoas ter dois olhos, uma boca, um cérebro, falar a mesma língua, nascer no mesmo país, sentir amor, tristeza e frio não as faz iguais às pessoas “comuns”. O que é ser uma pessoa “comum”? Seria ter “o básico”? Seria o básico aquilo que torna a vida digna, que faz a existência individual de uma pessoa ser reconhecida pela sociedade como “vida que merece ser vivida”. Como e quando chegamos, enquanto sociedade, nessa distinção entre a vida que “merece” ser vivida e a vida que não? Tanta violência, estatal, social, ideológica, emocional, se converte em comportamento. A elegância, a cortesia, a gentileza, a franqueza, acabam sendo as únicas ferramentas possíveis de sobrevivência em uma sociedade que valoriza a civilidade, mas só para quem não tem dinheiro. Quem tem dinheiro não precisa ser civilizado.

A partir dessa posição em que são colocadas na sociedade, a da margem da margem, da vida menos merecedora de ser vivida, essas pessoas percebem coisas muito diferentes do senso comum, vão diametralmente na direção contrária ao comportamento geral, vivem e criam, de fato, um mundo paralelo. Vivenciam muita solidariedade – ainda que haja sempre violência em todas as situações de opressão e falta do básico – e experimentam de uma liberdade que desconhecemos – nós, as pessoas escravizadas pelo trabalho, pela higiene, pelas contas. Essa população vive e mostra a libertação de um sistema hegemônico e assassino, ainda que não seja por escolha própria. E o preço dessa libertação é a marginalização completa e enormes sofrimentos. Mas a superação das dores e carências e a sobreviência num contexto tão massacrante tornam essas pessoas guardiãs de um jeito outro de viver. Essa população, os sem teto, guardadas as proproções de sua diversidade, criam e vivem sob outros valores, desegemonizando o sistema capitalista, seja politica, econômica, social ou emocionalmente. São as pessoas que o sistema matou, mas não morreram. E elas sobreviveram para contar, aliás, elas nos contam todos os dias como é a vida do lado de lá desse mundo que julgamos único e imutável. Nos contam sobre paz, amizade, solidariedade, sobre fé, perseverança, sobre amor, companheirismo, sobre filosofia, sociologia, economia, ecologia, ética… conceitos já colocados em cheque pelo nosso atual acordo social. Deste modo, ainda que não sejam conscientes dessa “elegância” (muitas o são) as pessoas em situação de rua a praticam naturalmente. Não me parece ser um esforço, uma falsa educação, carregada de rancores e inveja, pelo contrário. É a mais pura elegância, porque é baseada na verdadeira nobreza.

Outro fator que me parece plausível é o fato dessa população não ter acesso à intimidade. Imagine você o que seria da sua vida sem o momento do grotesco escondido, sem o aconchego despreocupado do largar-se dormindo, sem ter um lugar seguro e protegido para chorar, para fazer sexo, para defecar, comer, para o que quer que as pessoam façam nos momentos de intimidade e solitude. E não ter direito à intimidade não isenta essas pessoas das convenções sociais, pelo contrário, precisam provar sua civilidade o tempo todo, pois suas vestes, sua condição, seu odor, depõem contra todos os seus direitos enquanto seres humanos. Tudo nelas parece repugante aos olhos de uma sociedade que ama o cloro, que passa Veja e álcool, e lava com Omo, passa desodorante, desinfetante, perfume francês e “Bom ar”.

Imagine, agora, como seria se você tivesse visitas em sua casa todos os dias de sua vida. O resultado de ser social o tempo todo me parece que é uma elegância, uma discrição, uma notável capacidade de concentração e autocontrole. Uma consciência de si que está sempre em relação às demais pessoas, uma invidualidade que se constrói em completa simbiose com a coletividade. E o trato de quem tem essa vivência com as demais pessoas só pode ser lapidado, polido, elegante, modesto, hospitaleiro.

Está aí para quem quiser ver, a maior elegância da cidade está dormindo em papelões nas calçadas.

INGRITOS NO METRÔ

O metrô de dia de semana, mais claramente de manhã cedo, tem um silêncio de morte. A massa taciturna e ensimesmada segue seu trilho, sua trilha de gado com a cabeça baixa e a boca cerrada.

De sábado é outra história, outro som. As pessoas animadas, acompanhadas de família, amigues, etc, falam alto, riem, gesticulam.

Não há rebanho aos sábados, mesmo tendo bastante gente no metrô.

No sábado há vida porque as pessoas retomam suas vozes, seus sorrisos, suas vidas.

Essa discrepância entre os dias de semana, que representam a morte, o suicídio cotidiano, e o fim de semana, que é o pouco tempo que temos para tentarmos ser nós mesmas, essa contradição não pode ser ignorada, naturalizada.

O som e a atitude das pessoas no metrô são muito sintomáticos da vida tal como está organizada, e das nossas grades invisíveis. A morte vaza pelos buracos dos corpos, o banho pela manhã, a roupa limpa com cheiro de amaciante, o desodorante, nada consegue disfarçar o cheiro da morte que as pessoas emanam com seu silêncio, com os gritos para dentro. Ingritos. 

Generosos amores egoístas

28/02/12 – Hoje eu esperei o ônibus por 50 minutos. Tudo bem, fiquei puta, mas consegui manter o bom humor até quase 40 minutos de espera. Quando o bãs chegou perguntei pro motorista qual era a frequência do ônibus. “Meia em meia hora” – ele disse. Eu retruquei – “nem a pau, esse ônibus passa de meia em meia hora, tô aqui há uma hora (lógico que 50 minutos de espera é uma hora!) e o Edu Chaves, que passa de meia em meia hora, já passou quatro!!”

Daí entrei e tudo, passei na catraca, aquela coisa.

Nisso o motorista vai beeeeem devegarzinho, sem pressa, levando seu bãs e proseando com a bela senhora que estava no primeiro banco, o mais próximo do motorista. Era uma senhora negra, muito elegante, com um ar de tranquilidade, já devia ter bem mais que 60 anos, assim como o motorista.

Até aí, tudo ok, ele era um bom motorista, calmo, prestativo e conversador… ni qui a senhora desceu, ele começou a acelerar! Virou um louco, correu até!

Eu até achei bom, mesmo sendo medrosa, porque queria chegar logo (estava esperando há uma hora…).

Mas como julgar este senhor? Vai que ele espera todo dia (e toda noite) pelos deliciosos 30 minutos (ou 50) que ele passa ao lado daquela elegante senhora?! Vai que o motivo de viver dessa senhora seja aqueles exatos 50 minutos de cada dia…

Mas quando entrei no ônibus, reclamei… eu não sabia dessa história toda. 

A dignidade da água

A água escorre na sarjeta

Suja, turva

Noite

Luzes amarelas nos postes

A água reflete a luz

Seu movimento, suas pequenas ondas

Cumprem sua natureza

E, lindamente, refletem a luz amarelada

Apesar do seu maltrato

Sua podridão e tudo de mau

Que ela pode estar levando

Ela lindamente reflete a luz.


A paisagem, uma avenida triste

Com prédios gigantes e novos

Um pronto

E um em construção.

Não fosse a água, tão digna

E a luz do poste

Seria só melancolia.


A água ancestral

A mesma do começo do mundo

Me trouxe um rio de lirismo

E um sopro de alegria

Mesmo que suja e contaminada.

Vocês, humanos, estão mortos!

Na tarde ensolarada daqui do centro, o som ao redor tem motores, rumores, cantores sertanejos, sons de construção, vozes ao longe e um cachorro latindo insistentemente. O que será que ele diz? Sua força, insistência e convicção me fazem escutar algo como: “Vocês estão vivos? Se sentem vivos? Essa vida que levamos não faz o menor sentido! Duvido alguém sair na janela agora e latir para mim de volta! Mortos! Vocês, humanos, estão mortos!” 

Ele é um cachorro muito lúcido e sensível.

A vida é uma batucada

O tempo, o ritmo. Tudo tem um tempo e um ritmo. O ideal é conseguir, em cada contato, escutar o ritmo e respeitar o tempo (o seu próprio, o dx outrx e o do encontro). No entanto, a ansiedade parece um botão de forward no nosso tempo. Eu não conheço bem meu tempo, eu só o sinto, mas não tenho controle sobre ele, e nem sobre as coisas que influenciam meu tempo, como as obrigações, as situações com as pessoas…

O tempo da fala não é o mesmo do pensamento.

E o tempo do pensamento não é o mesmo do sentimento.

Pro sentimento virar pensamento leva um tempo.

E pro tempo conseguir levar um sentimento, precisa de muito pensamento.

Mas, se tudo tem tempo e ritmo, a gente nunca está paradx, é só aguçarmos a escuta que uma música se organiza e uma dança a acompanha.

Eu escuto o mar batendo, as ondas suaves. Domingo em SP. As ondas são carros que passam ao longe e rasgam o ar, como as ondas. O burburinho ao longe, eu juro que é parecido.

Nos dias de semana, a cidade pela manhã, o som é tão louco.  É tão claro o momento em que começa o ronronar dos motores, no começo mais esparsos, sons de carros passando, depois uma massa sonora, um diapasão, o tom do dia é dado pelos motores. Parece que o sol veio e apertou o botão que liga a máquina una, aquela que começa a funcionar quando todas as máquinas estão funcionando juntas.

O ritmo das pessoas é diferente. Mesmo entrando no ritmo da cidade, ou da aldeia, cada pessoa carrega seu ritmo, seu tempo. E na verdade cada pessoa pode ter vários ritmos… e eles podem ir mudando. Não é uma questão de entender, porque entender é impossível, mas de sentir, de pulsar, de batucar junto.

Rir e chorar na cidade fria

No ônibus…

Um moço gordinho, alto e loiro está de joelhos em seu assento para falar por cima dele com dois moços sentados atrás. Os moços são africanos, vendedores de relógios e bijouterias. Eles dão uma atenção paciente ao moço loiro, que toma uma cerveja e come do salgadinhos dos moços. Em uma curva o moço loiro deixa cair sua lata de cerveja, que derrama rapidamente e molha todo o corredor do ônibus. Ele demonstra estar bêbado. Passa a duras penas pela catraca, cabaleando, solto no ônibus em movimento. Cai sobre uma moça que está atrás dele. O frisson causado por ele é grande, alguns temem que ele caia, outros dão risada. O clima é leve, como se os bêbados de bom coração tivessem algum tipo de licença poética, uma colher de chá…

O moço bêbado vai para o fundo e se aquieta. Páro de notar sua presença. De repente ouço um choro dolorido, logo atrás de mim. Um choro agudo, parecia uma moça. O choro vai ficando mais alto e mais sentido. Não sei o que fazer, a passoa parece inconsolável. Me pergunto: “o que terá acontecido? Será que recebeu uma notícia triste? Mas quem daria uma má notícia para alguém assim, no ônibus? Não podia esperar a pessoa chegar em casa? O que eu faço? Levanto? Dou um abraço?” Então, meio sem saber ao certo o que fazer, olho para trás e o que vejo? O bêbado, deitado, ocupando dois assentos, olhando para um celular e chorando, chorando…

Ô vida!

No metrô…

Estação Butantã.

Alguém está gargalhando. Não consigo ver quem é, mas algumas pessoas que já cruzaram com a gargalhona passam por mim sorrindo também, ou rindo. Caminho um pouco mais e vejo: uma moça de shorts curtos e camiseta regata sentada nas escadas. Está muito frio, eu visto duas blusas e temo que terei frio ainda ao longo da noite. A moça está encolhida, sozinha, e ri, ri muito. Pára alguns instantes e logo recomeça a gargalhar. Justo ela, a única pessoa sem agasalho, aquela que, aparentemente não teria nenhum motivo para rir. O que pensar? Que é loucura? Que ela pode, de fato, ter algo muito engraçado em mente? Que é uma performance? Que, com a risada, ela está criando uma fissura no nosso ego aquecido? Que a adrenalina da coragem de rir alto em público a aquece? Essa cidade me confunde…

O chão duro da cidade

Andando pelas ruas de São Paulo vejo pelo chão cabelos, fezes, urina, sangue, porra, pus, saliva, lágrimas, unhas, peças de roupa e sapatos usados. Pedaços de pessoas e pessoas aos pedaços. O chão da cidade é feito de massa humana. Partes que se descolam do ser, tudo no chão na cidade. Partes de corpos inteiros e despedaçados, expostos na sua decomposição, corpos insepultos, desprovidos de qualquer intimidade – no amor, nas necessidades e na morte.

A sensação não é exatamente nojo, o que revira meu estômago é a indignidade, a exposição crua das entranhas das pessoas que sentem fome, frio, e se despedaçam, como eu, mas em público, no chão sujo de outras pessoas.