Seja barraqueira, seja heroína – Relato de uma barraqueira

Na minha numerosa família tem só três barraqueiras: eu, minha mãe e minha tia Sandra. Não é que a gente não é bem vista por termos essa tática de sobrevivência, ninguém nos critica, mas não é bem o comportamento geral, nem na minha família, nem no meu país.

Por adotar a tática barraqueira eu já estive em diversas situações e já ouvi narrativas históricas de barracos familiares também.

Quando eu falo “barraco” não estou falando da modalidade “moradia” mas sim de fazer escândalo por um motivo de justiça (na maioria das vezes).

Barraco é bem diferente de “piti”, barraco é um pedido de socorro de alguém oprimido, que clama pela justiça social, que envolve toda a comunidade em uma questão aparentemente pessoal ou individual. Piti é mimo, é gente empanturrada reclamando ou fazendo valer seus privilégios.

Eu não tenho vergonha nenhuma de ser barraqueira, mas confesso que é desgastante. O barraco é algo que se faz necessário, muitas vezes, mais do que uma escolha. Pode acontecer a qualquer momento. Eu jamais me perdoaria por não ter armado alguns barracos que armei, e me arrependo muito de alguns que eu não armei.

Eu cresci, então, com essa barraqueira se formando dentro de mim e (vi)vendo barracos, que mesmo me deixando muito tensa e desgastada, também me lavavam a alma e me davam uma sensação de que “acordos sociais de justiça” existiam.

Não sei se eu que cresci, ou se o mundo mudou, ou se os dois. Mas já adulta me deparei com outros olhares ao meu redor quando armava algum barraco. Olhares de incômodo e não de cumplicidade. Como se, de repente, eu me desse conta de que incomodava mais a minha reclamação do que a situação que a gerou. Como se ninguém se desse conta de que eu estava reclamando de algo que também os afetava, ou melhor, que os afeta sim, mas eles aguentam bravamente sem reclamar e que, se você reclama, é porque você “não aguenta”.

Pode ser também que os olhares de incômodo frente a um barraco se voltem contra a barraqueira, ou que a denúncia de uma injustiça se volte contra o denunciante, porque a barraqueira devolve a responsabilidade de uma situação problemática para as pessoas que estão ao redor. NÓS vamos deixar isso acontecer? Ninguém vai fazer nada? Seremos todxs cúmplices, esse é nosso acordo? Daí vem o escândalo: da abertura, do escancaramento da situação, como se todos se desnudassem um pouco, mostrando quem são frente a opressões, desigualdades, injustiças, desequilíbrios, destruições, ameaças. De que lado ficam. A barraqueira traça uma linha de giz no chão e pergunta quem fica de cada lado da linha, e acaba fazendo com que as pessoas façam escolhas. Silenciar é uma delas. E todas as escolhas, as posturas e os comportamentos são sociais e cultivados em alguma instância, e têm suas razões.

Mas tem também quem compre o barraco alheio, não são muitxs, mas acontece. Isso salva o rolê, tanto do barraco propriamente dito quanto do desgaste emocional e da sensação de nadar contra a corrente sempre na vida.

Eu não diria que nosso povo quer reformatar seus acordos sociais de justiça pra pior, mas sinto que isso vem acontecendo porque estamos muito cansadxs sempre. E armar barraco cansa. E tem a vulnerabilidade também – armar barraco, dependendo da situação, pode te custar a vida. E cada vez mais.

O barraco, ao meu ver, é um comportamento mais feminino e do universo LGBTQIA+, quem sabe seja uma herança africana na nossa cultura. Não sei mesmo o motivo, mas desconfio que, por ser uma estratégia de sobrevivência, ele seja mais demandado por populações oprimidas sistemica, social e individualmente.

“É deselegante”… já ouvi isso também, que você perde a razão dependendo do jeito que você fala. Mas forma e conteúdo estão muito relacionados. Eu consigo falar “de boa” também, mas a forma da mensagem, ou seja, no formato “barraco”, tem uma razão de ser. Comigo o barraco não é um lance “me sobe o sangue”, “eu perco a cabeça”, “quando eu vi já estava lá”. Não totalmente. É bem oxigenado. Se eu não estiver com fome, eu diria que sou até educada nos barracos. Eu procuro não usar palavrão, esse é um dos meus únicos critérios. Não sei se é porque sou professora ou porque vivo no Brasil, mas aprendi que, quando você quer lacrar no barraco, eleve o tom mas sem abaixar o nível. Estou falando por mim, tá? Essa é a minha estratégia pra um barraco ter algum êxito sem descambar.

O barraco almeja muito mais levantar o debate do que resolver a situação. Penso isso quando dizem que não adianta nada fazer barraco, que as coisas não mudam, que só vai gerar conflito. Exatamente porque a situação problemática é complexa e envolve a todxs que as pessoas ao redor são conclamadas pela barraqueira para participarem do desfecho, da solução.

Teve até um barraco que me gravaram e jogaram na internet! Daí, nos comentários, ficou equilibrado os que me defenderam (e à causa defendida no barraco) e os que me atacaram. Ufa! Mas complexo isso de gravar barraco e jogar na fogueira das mídias sociais. Não concordo, não. Temos que ter direito à privacidade até mesmo num barraco. Nada de sensacionalismo, barraco não é sensacionalismo!

Obviamente, existem momentos mais adequados e menos adequados para barracos. Não dá pra recorrer sempre a esse método, pois dessa forma ele se desgasta e perde a sua eficácia. Percebo também que, muitas vezes, o barraco se dá muito mais pela recepção da mensagem pela pessoa “corrigida” do que como uma agressão ou afronta por parte da barraqueira. Falar o óbvio é considerado já um princípio de barraco no país das atenuantes.

Os motivos do barraco dizem muito sobre quem nós somos e nossas escolhas e universos pessoais. Qual é o nosso limite? De qual ponto a gente não deixa passar? O que não pode passar batido? Quando é a hora de envolver mais gente na questão? Quando é a hora de intervir um uma situação? A questão é só minha ou é de mais gente ao meu redor? Acho que nesse sentido todo mundo já armou algum barraco na vida, uns mais, outros menos, alguns nem consideraram que o que fizeram foi barraco, mas o revide, o não-silenciar, é quase instintivo, eu acho. Fica o estigma de barraqueira para quem tem mais frequência nesse lapso de “isso eu não vou deixar passar” ou para quem tem a manha de comprar barracos alheios.

O barraco é o recurso de quem só tem o peito e a voz para enfrentar uma situação injusta ou degradante, mas sabe que tem consigo uma comunidade com acordos sociais de justiça, ainda que eles pareçam ofuscados e fragilizados pelo massacre nosso de cada dia chamado capitalismo.

Mas tudo isso eu intuia sem colocar assim em ideias delineadas, até o dia em que eu estava passando de ônibus e vi uma pixação bem pequena, numa porta de metal dessas de correr. Parecia até escrito com branquinho ou canetinha. Dizia: seja barraqueira, seja heroína. Aí eu vi vantagem mesmo em ser barraqueira. Não é que eu queira me gabar nem nada, nem me envaidecer ou hypar, nem mesmo comercializar ou propagandear um dom. Eu quero é enaltecer o barraco, porque ele é fundamental para a nossa sobrevivência, tanto individual quanto social. Se ser barraqueira é não se calar, e não se calar é ser heroína, então esse pixo tá certinho.

Só o lixo prospera

Não paro de sentir saudades do tempo em que o mundo parecia ter futuro.

Tinha esse clima no ar.

Será que era porque eu era criança? Anos 1980, 1990. O país saindo da ditadura…

Os jovens pareciam mais saudáveis.

A Mata Atlântica tinha redutos de preservação. As matas preservadas tinham bichos. O microplástico não estava em toda a água do planeta.

Ainda existia uma ideia de liberdade, ou uma busca por corpos mais livres e leves.

Eu sentia o viver no mundo como se fosse sempre logo depois da chuva. O ar era poluído mas tinha seus momentos de frescor. O poluído ainda assustava.

Hoje o poluído é a regra e o ar puro é que assusta.

Tudo se esvaziou. O presente nada mais é que uma eterna sequência de agoras. Sem passado e sem futuro.

Tem quem ponha filhos no mundo e os crie.

Eu gosto de plantar.

Todas as sementes devem cumprir sua missão na terra, germinar. Mesmo que depois morram. Elas topam.

As sementes não escolhem o melhor lugar. Elas precisam lidar com o fato de que não podem se mover por conta própria. Onde calhar delas caírem, elas nascem. Se der, elas dão!

Isso eu entendo da vida.

Não importa se a vida da gente não é como uma árvore centenária.

Tem milhões e milhões de sementes que nascem e vivem pouco. Morrem jovens. Para elas, valeu. Mais vale viver pouco do que não viver.

Por outro lado…

Se a natureza é perfeita e levou milhões de anos para formar esse corpo fantástico.

Se a natureza é sábia e levou milhões de anos para desenvolver as plantas, os animais, os rios e o ambientes favoráveis à vida.

Por que morrem crianças e jovens?

Por que as árvores não vivem todas por centenas de anos?

Por que quase nada que não seja lixo prospera nesse mundo?

Por que, entre aqueles que vivem e podem seguir vivendo, há tantos que escolhem não viver?

A elegância da população em situação de rua

Já faz um tempo que tenho reparado na elegância das pessoas em situação de rua. A maioria das pessoas que vejo nesta condição aqui na cidade de São Paulo, e não é pouca gente, é muito educada, mais que educada, é elegante.

Esse fato é instigante – da elegância justamente naquelas pessoas que julgamos incivilizadas, destituídas de qualquer valor, de qualquer luxo – numa sociedade que valoriza as pessoas pelo que elas têm, e não pela sua ética, altruísmo e por suas atitudes. E não sejamos hipócritas, a falta de higiene, de intimidade, e da possibilidade de abrigar-se – enquanto direitos básicos, é sim fator decisivo para a maneira como essas pessoas são vistas e tratadas pela sociedade.

Vários motivos para esse fenômeno, o da elegância das pessoas em situação de rua, me ocorrem…

A violência estatal (da ordem, que só é eficaz na repressão aos mais fracos e vulneráveis e na proteção ao patrimônio) e a violência da sociedade, com seu nojo, seu desprezo, seu julgamento e seu higienismo letal geraram uma população de gatos escaldados, de sobreviventes ao pior do capitalismo cristão. Pessoas que sabem o peso da lei, do abuso, da desvalorização da vida, da falta de empatia, do frio, da fome, do medo. Precisam ser verdadeiros lordes e damas para não serem destratadas. Precisam se superhumanizar para serem visíveis, quando uma sociedade consegue apagar da paisagem pessoas sem nem usar inteligência artificial. Não podem assustar, porque, para essa população, assustar é crime. Para essas pessoas ter dois olhos, uma boca, um cérebro, falar a mesma língua, nascer no mesmo país, sentir amor, tristeza e frio não as faz iguais às pessoas “comuns”. O que é ser uma pessoa “comum”? Seria ter “o básico”? Seria o básico aquilo que torna a vida digna, que faz a existência individual de uma pessoa ser reconhecida pela sociedade como “vida que merece ser vivida”. Como e quando chegamos, enquanto sociedade, nessa distinção entre a vida que “merece” ser vivida e a vida que não? Tanta violência, estatal, social, ideológica, emocional, se converte em comportamento. A elegância, a cortesia, a gentileza, a franqueza, acabam sendo as únicas ferramentas possíveis de sobrevivência em uma sociedade que valoriza a civilidade, mas só para quem não tem dinheiro. Quem tem dinheiro não precisa ser civilizado.

A partir dessa posição em que são colocadas na sociedade, a da margem da margem, da vida menos merecedora de ser vivida, essas pessoas percebem coisas muito diferentes do senso comum, vão diametralmente na direção contrária ao comportamento geral, vivem e criam, de fato, um mundo paralelo. Vivenciam muita solidariedade – ainda que haja sempre violência em todas as situações de opressão e falta do básico – e experimentam de uma liberdade que desconhecemos – nós, as pessoas escravizadas pelo trabalho, pela higiene, pelas contas. Essa população vive e mostra a libertação de um sistema hegemônico e assassino, ainda que não seja por escolha própria. E o preço dessa libertação é a marginalização completa e enormes sofrimentos. Mas a superação das dores e carências e a sobreviência num contexto tão massacrante tornam essas pessoas guardiãs de um jeito outro de viver. Essa população, os sem teto, guardadas as proproções de sua diversidade, criam e vivem sob outros valores, desegemonizando o sistema capitalista, seja politica, econômica, social ou emocionalmente. São as pessoas que o sistema matou, mas não morreram. E elas sobreviveram para contar, aliás, elas nos contam todos os dias como é a vida do lado de lá desse mundo que julgamos único e imutável. Nos contam sobre paz, amizade, solidariedade, sobre fé, perseverança, sobre amor, companheirismo, sobre filosofia, sociologia, economia, ecologia, ética… conceitos já colocados em cheque pelo nosso atual acordo social. Deste modo, ainda que não sejam conscientes dessa “elegância” (muitas o são) as pessoas em situação de rua a praticam naturalmente. Não me parece ser um esforço, uma falsa educação, carregada de rancores e inveja, pelo contrário. É a mais pura elegância, porque é baseada na verdadeira nobreza.

Outro fator que me parece plausível é o fato dessa população não ter acesso à intimidade. Imagine você o que seria da sua vida sem o momento do grotesco escondido, sem o aconchego despreocupado do largar-se dormindo, sem ter um lugar seguro e protegido para chorar, para fazer sexo, para defecar, comer, para o que quer que as pessoam façam nos momentos de intimidade e solitude. E não ter direito à intimidade não isenta essas pessoas das convenções sociais, pelo contrário, precisam provar sua civilidade o tempo todo, pois suas vestes, sua condição, seu odor, depõem contra todos os seus direitos enquanto seres humanos. Tudo nelas parece repugante aos olhos de uma sociedade que ama o cloro, que passa Veja e álcool, e lava com Omo, passa desodorante, desinfetante, perfume francês e “Bom ar”.

Imagine, agora, como seria se você tivesse visitas em sua casa todos os dias de sua vida. O resultado de ser social o tempo todo me parece que é uma elegância, uma discrição, uma notável capacidade de concentração e autocontrole. Uma consciência de si que está sempre em relação às demais pessoas, uma invidualidade que se constrói em completa simbiose com a coletividade. E o trato de quem tem essa vivência com as demais pessoas só pode ser lapidado, polido, elegante, modesto, hospitaleiro.

Está aí para quem quiser ver, a maior elegância da cidade está dormindo em papelões nas calçadas.

Silênciofobia

O silêncio foi considerado oficialmente extinto.

Não é encontrado em lugar nenhum da Terra.

Mesmo os que dizem que ele nunca de fato existiu agora consideram que ele não existe mesmo, ou pelo menos, desde o surgimento da energia elétrica.

Há quem lute para preservá-lo, mas são poucos. Apesar de muitos gostarem do silêncio, já o vêem como uma quimera, um sonho inalcansável.

Há aqueles que não o suportam e o perseguem cada dia mais. Um fenômeno crescente nos dias atuais – o ódio ao silêncio.

Nzinga sussurando

Todas queremos saber nosso destino. Queremos que seres divinos nos digam que somos mesmo como todas as outras, só mais uma…

O que é destino quando estamos e somos uma multidão?

Eu sou divinamente igual a todas as outras pessoas, as vejo pelas ruas, o que nos une é o nosso cansaço. Nele nos encontramos. Igualmente exploradas, ainda que de formas e em níveis diferentes. São iguais os corpos, são corpos que se cansam. O brilho oleoso na pele, o suor que não seca, o medo, a vontade de dançar enterrada no corpo – que precisa conseguir seguir vivendo, a vida sonhada (ainda que o sonho seja abstrato, disforme e incompreensível).

De repente, a conversa puxada no ponto de ônibus louva à chuva e agradece à vida, é troca de esperanças, fôlego novo que vem do ar expirado por outra pessoa. Apesar de tudo, temos sim umas às outras. Só o limite nos mostra isso, depois, não tem volta, a esperança se instala, é Nzinga sussurrando: “o que se pode fazer para além de aguentar?”

Vocês, humanos, estão mortos!

Na tarde ensolarada daqui do centro, o som ao redor tem motores, rumores, cantores sertanejos, sons de construção, vozes ao longe e um cachorro latindo insistentemente. O que será que ele diz? Sua força, insistência e convicção me fazem escutar algo como: “Vocês estão vivos? Se sentem vivos? Essa vida que levamos não faz o menor sentido! Duvido alguém sair na janela agora e latir para mim de volta! Mortos! Vocês, humanos, estão mortos!” 

Ele é um cachorro muito lúcido e sensível.

O dia em que beijei uma rosa

Já faz tempo que aconteceu. Eu tinha uma rosa amarela. Eu não a tinha, ela era minha, mas logicamente não me pertencia. Eu a comprei para tomar um banho com ela, receita do caboclo. Mas quando cheguei em casa, fui incapaz de colocá-la na água fervente. Ela era exuberante, tão viva e plena, muito amarela e suave, não poderia ser morta. Decidi esperar ela ir morrendo para fazer o banho, e ir curtindo a cozinha com aquela hóspede tão singela e exuberante. Ela ficou na mesa por um bom tempo e não perdia sua beleza com o tempo. Quando fazia minhas refeições ela me fazia companhia e eu a observava demoradamente e muito admirada. Acho que nos apaixonamos. Além da sua beleza irracional, ela tinha um cheiro suave, doce e delicado. E, sem exageros (porque todos sabem que, em se tratando de uma rosa, nada é exagero), ela era deliciosamente aveludada, acariciá-la levemente era extremamente prazeroso. Um dia, com os dedos perdidos entre as pétalas, senti necessidade de mais sensibilidade. Os dedos têm as pontas com a pele grossa, não são a parte mais sensível do corpo, era preciso tocar com os lábios, que têm a pele mais fina. Toquei, me perdi entre as pétalas. Foi assim que eu e a rosa nos beijamos.

A vida é uma batucada

O tempo, o ritmo. Tudo tem um tempo e um ritmo. O ideal é conseguir, em cada contato, escutar o ritmo e respeitar o tempo (o seu próprio, o dx outrx e o do encontro). No entanto, a ansiedade parece um botão de forward no nosso tempo. Eu não conheço bem meu tempo, eu só o sinto, mas não tenho controle sobre ele, e nem sobre as coisas que influenciam meu tempo, como as obrigações, as situações com as pessoas…

O tempo da fala não é o mesmo do pensamento.

E o tempo do pensamento não é o mesmo do sentimento.

Pro sentimento virar pensamento leva um tempo.

E pro tempo conseguir levar um sentimento, precisa de muito pensamento.

Mas, se tudo tem tempo e ritmo, a gente nunca está paradx, é só aguçarmos a escuta que uma música se organiza e uma dança a acompanha.

Eu escuto o mar batendo, as ondas suaves. Domingo em SP. As ondas são carros que passam ao longe e rasgam o ar, como as ondas. O burburinho ao longe, eu juro que é parecido.

Nos dias de semana, a cidade pela manhã, o som é tão louco.  É tão claro o momento em que começa o ronronar dos motores, no começo mais esparsos, sons de carros passando, depois uma massa sonora, um diapasão, o tom do dia é dado pelos motores. Parece que o sol veio e apertou o botão que liga a máquina una, aquela que começa a funcionar quando todas as máquinas estão funcionando juntas.

O ritmo das pessoas é diferente. Mesmo entrando no ritmo da cidade, ou da aldeia, cada pessoa carrega seu ritmo, seu tempo. E na verdade cada pessoa pode ter vários ritmos… e eles podem ir mudando. Não é uma questão de entender, porque entender é impossível, mas de sentir, de pulsar, de batucar junto.

Sobre o carinho…

Eu estava no ponto esperando o ônibus. Encostou o Campo Limpo e logo uma mini fila multidão para adentrá-lo. Uma mãe com sua filha encontrou outra mãe com seu filho, e a menina, ao ver seu “amiguinho” ficou muito feliz. Ela disse: “Caio! Caio! Oi!” e o abraçou suave e carinhosamente. O menino não esboçou reação. Ela demonstrou estar feliz com a presença dele. Meio desconcertada com a frieza dele, ela fez mais um gesto suave de abraço (eles deviam ter entre 5 e 7 anos), foi quando o menino soltou: “Você me irrita!” Ela disse: “Não irrito, não!”. A mãe dela puxou-a para entrarem no ônibus dizendo “irrita sim!”. Esta foi a cena que vi hoje. Durou menos de um minuto, talvez dois…

Por que o carinho irrita? Por que demonstrar felicidade pela presença do outro não é comum e pode até ser ruim?

1.    Seria porque o carinho sela um acordo e precisa de reciprocidade?! Mesmo sendo passivo no ato escandaloso de receber carinho, isso representa uma intimidade extravagante. Mesmo não estando em público. Mas, ainda que na intimidade, o carinho é quase um investimento. Você dá e quer receber, logo, você recebe… e tem que dar!! Esse “tem que dar” quando você recebe é que pode causar essa estranheza do recebimento. E o contrário também: você, ciente disso, quando dá carinho pensa que o outro pode se sentir obrigado a retribuir, então, para que ele não tenha que ser obrigado a nada, você já nem dá o seu carinho, para não constrangê-lo.

2.    Seria porque o carinho rompe o maior limite que temos na vida? O limite do nosso corpo, do que podem fazer com ele? Quando nos encontramos numa era de extremos e distanciamento da natureza, temos contato físico por poucos motivos. Violência e sexo são os mais comuns. Artes, esportes e superpopulação também configuram contatos físicos.  O toque voluntário ou involuntário. A vontade do toque. Quem quer tocar e quem é tocado. Quem quer tocar não sente o mesmo de quem é tocado. Quem é tocado, é tocado pelo corpo do outro e pela expectativa que o outro tem. Em quem exatamente o carinho está a tocar? Ele não sabe. Mas quem é tocado sente (ou pode sentir) o incômodo que vem da possibilidade de quem o acaricia estar projetando no seu objeto acarinhado uma outra pessoa.

3.    A pessoa acarinhada pode estar em outro universo quando vem alguém e o toca, fazendo-o retornar à sua materialidade quando sente outro corpo a tocá-lo.

4.    A pessoa rabugenta pode temer o carinho porque este poderia amaciar o seu coração endurecido. E isso poderia viciar. E então iria sofrer por não ter carinho todas as vezes que quisesse.

5.    O carinho pode irritar porque a pessoa que o faz tem um ar espontâneo, o que te faz lembrar que você não é espontâneo e por isso nunca toca as pessoas. Quando alguém te toca você pode se irritar por descobrir por alguns instantes o que está perdendo quando não toca nas pessoas.

6.    Mas, principalmente, o carinho é uma declaração de amor, uma entrega. E ninguém quer se entregar e nem receber entregas, mesmo havendo amor, não pode ser demais. Ame e não dê vexame.

     7. O carinho desperta paixões, emoções. Desperta e demonstra  responsabilidade. Representa cuidado. E cuidar dá trabalho, ser cuidado também.