Vocês, humanos, estão mortos!

Na tarde ensolarada daqui do centro, o som ao redor tem motores, rumores, cantores sertanejos, sons de construção, vozes ao longe e um cachorro latindo insistentemente. O que será que ele diz? Sua força, insistência e convicção me fazem escutar algo como: “Vocês estão vivos? Se sentem vivos? Essa vida que levamos não faz o menor sentido! Duvido alguém sair na janela agora e latir para mim de volta! Mortos! Vocês, humanos, estão mortos!” 

Ele é um cachorro muito lúcido e sensível.

Dog camarada

Eu acabei ficando amiga de um cachorrinho aqui do meu quarteirão. Ele fica preso na laje de um semi-prédio, um lugar que compra materiais de reciclagem. Ele fica latindo, não a tarde toda como aqueles cachorros histéricos, mas ele parece chamar os amigos de tempos em tempos. Eu o vejo pela janela da lavanderia, que também dá para os fundos do prédio fru-fru do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB). Na verdade ele não é fru-fru, ele é um prédio até antigo e bem bonito, mas o que rola ali é trabalho, e entre pessoas com camisas pólo e o pequinês da loja que compra latinhas, eu fico com o dog. Fico? Hoje mesmo eu feri seu coração.

Esqueci de mencionar que há algum tempo a gente vem conversando. Primeiro eu tentei latir de volta para ele, mas como eu não sei latir certo, ele parecia irritado comigo (como se eu inventasse um gramelô de alguma língua e achasse que poderia realmente me comunicar dessa forma com alguém que fala de verdade essa língua). Nessa época o dog tinha um amigo, mas ele já não está mais…

Comecei a assobiar, parecia mais digno. Ele late, eu assobio, e assim trocamos alguns cumprimentos pelas tardes vazias.

Hoje mesmo, estávamos num papo quando os arquitetos de camisa pólo nos viram. Eles ficaram olhando e eu fiquei sem graça, estava mesmo me abrindo para o dog. Parei de assobiar. O dog continuou puxando assunto, mas eu não respondia. Ele dava mais uns latidinhos e parava. Eu quieta, esperando os arquitetos saírem da janela. Quando fui assobiar de volta o dog já estava entretido num papo com uma pomba que passava por ali.