A elegância da população em situação de rua

Já faz um tempo que tenho reparado na elegância das pessoas em situação de rua. A maioria das pessoas que vejo nesta condição aqui na cidade de São Paulo, e não é pouca gente, é muito educada, mais que educada, é elegante.

Esse fato é instigante – da elegância justamente naquelas pessoas que julgamos incivilizadas, destituídas de qualquer valor, de qualquer luxo – numa sociedade que valoriza as pessoas pelo que elas têm, e não pela sua ética, altruísmo e por suas atitudes. E não sejamos hipócritas, a falta de higiene, de intimidade, e da possibilidade de abrigar-se – enquanto direitos básicos, é sim fator decisivo para a maneira como essas pessoas são vistas e tratadas pela sociedade.

Vários motivos para esse fenômeno, o da elegância das pessoas em situação de rua, me ocorrem…

A violência estatal (da ordem, que só é eficaz na repressão aos mais fracos e vulneráveis e na proteção ao patrimônio) e a violência da sociedade, com seu nojo, seu desprezo, seu julgamento e seu higienismo letal geraram uma população de gatos escaldados, de sobreviventes ao pior do capitalismo cristão. Pessoas que sabem o peso da lei, do abuso, da desvalorização da vida, da falta de empatia, do frio, da fome, do medo. Precisam ser verdadeiros lordes e damas para não serem destratadas. Precisam se superhumanizar para serem visíveis, quando uma sociedade consegue apagar da paisagem pessoas sem nem usar inteligência artificial. Não podem assustar, porque, para essa população, assustar é crime. Para essas pessoas ter dois olhos, uma boca, um cérebro, falar a mesma língua, nascer no mesmo país, sentir amor, tristeza e frio não as faz iguais às pessoas “comuns”. O que é ser uma pessoa “comum”? Seria ter “o básico”? Seria o básico aquilo que torna a vida digna, que faz a existência individual de uma pessoa ser reconhecida pela sociedade como “vida que merece ser vivida”. Como e quando chegamos, enquanto sociedade, nessa distinção entre a vida que “merece” ser vivida e a vida que não? Tanta violência, estatal, social, ideológica, emocional, se converte em comportamento. A elegância, a cortesia, a gentileza, a franqueza, acabam sendo as únicas ferramentas possíveis de sobrevivência em uma sociedade que valoriza a civilidade, mas só para quem não tem dinheiro. Quem tem dinheiro não precisa ser civilizado.

A partir dessa posição em que são colocadas na sociedade, a da margem da margem, da vida menos merecedora de ser vivida, essas pessoas percebem coisas muito diferentes do senso comum, vão diametralmente na direção contrária ao comportamento geral, vivem e criam, de fato, um mundo paralelo. Vivenciam muita solidariedade – ainda que haja sempre violência em todas as situações de opressão e falta do básico – e experimentam de uma liberdade que desconhecemos – nós, as pessoas escravizadas pelo trabalho, pela higiene, pelas contas. Essa população vive e mostra a libertação de um sistema hegemônico e assassino, ainda que não seja por escolha própria. E o preço dessa libertação é a marginalização completa e enormes sofrimentos. Mas a superação das dores e carências e a sobreviência num contexto tão massacrante tornam essas pessoas guardiãs de um jeito outro de viver. Essa população, os sem teto, guardadas as proproções de sua diversidade, criam e vivem sob outros valores, desegemonizando o sistema capitalista, seja politica, econômica, social ou emocionalmente. São as pessoas que o sistema matou, mas não morreram. E elas sobreviveram para contar, aliás, elas nos contam todos os dias como é a vida do lado de lá desse mundo que julgamos único e imutável. Nos contam sobre paz, amizade, solidariedade, sobre fé, perseverança, sobre amor, companheirismo, sobre filosofia, sociologia, economia, ecologia, ética… conceitos já colocados em cheque pelo nosso atual acordo social. Deste modo, ainda que não sejam conscientes dessa “elegância” (muitas o são) as pessoas em situação de rua a praticam naturalmente. Não me parece ser um esforço, uma falsa educação, carregada de rancores e inveja, pelo contrário. É a mais pura elegância, porque é baseada na verdadeira nobreza.

Outro fator que me parece plausível é o fato dessa população não ter acesso à intimidade. Imagine você o que seria da sua vida sem o momento do grotesco escondido, sem o aconchego despreocupado do largar-se dormindo, sem ter um lugar seguro e protegido para chorar, para fazer sexo, para defecar, comer, para o que quer que as pessoam façam nos momentos de intimidade e solitude. E não ter direito à intimidade não isenta essas pessoas das convenções sociais, pelo contrário, precisam provar sua civilidade o tempo todo, pois suas vestes, sua condição, seu odor, depõem contra todos os seus direitos enquanto seres humanos. Tudo nelas parece repugante aos olhos de uma sociedade que ama o cloro, que passa Veja e álcool, e lava com Omo, passa desodorante, desinfetante, perfume francês e “Bom ar”.

Imagine, agora, como seria se você tivesse visitas em sua casa todos os dias de sua vida. O resultado de ser social o tempo todo me parece que é uma elegância, uma discrição, uma notável capacidade de concentração e autocontrole. Uma consciência de si que está sempre em relação às demais pessoas, uma invidualidade que se constrói em completa simbiose com a coletividade. E o trato de quem tem essa vivência com as demais pessoas só pode ser lapidado, polido, elegante, modesto, hospitaleiro.

Está aí para quem quiser ver, a maior elegância da cidade está dormindo em papelões nas calçadas.