Sobre o carinho…

Eu estava no ponto esperando o ônibus. Encostou o Campo Limpo e logo uma mini fila multidão para adentrá-lo. Uma mãe com sua filha encontrou outra mãe com seu filho, e a menina, ao ver seu “amiguinho” ficou muito feliz. Ela disse: “Caio! Caio! Oi!” e o abraçou suave e carinhosamente. O menino não esboçou reação. Ela demonstrou estar feliz com a presença dele. Meio desconcertada com a frieza dele, ela fez mais um gesto suave de abraço (eles deviam ter entre 5 e 7 anos), foi quando o menino soltou: “Você me irrita!” Ela disse: “Não irrito, não!”. A mãe dela puxou-a para entrarem no ônibus dizendo “irrita sim!”. Esta foi a cena que vi hoje. Durou menos de um minuto, talvez dois…

Por que o carinho irrita? Por que demonstrar felicidade pela presença do outro não é comum e pode até ser ruim?

1.    Seria porque o carinho sela um acordo e precisa de reciprocidade?! Mesmo sendo passivo no ato escandaloso de receber carinho, isso representa uma intimidade extravagante. Mesmo não estando em público. Mas, ainda que na intimidade, o carinho é quase um investimento. Você dá e quer receber, logo, você recebe… e tem que dar!! Esse “tem que dar” quando você recebe é que pode causar essa estranheza do recebimento. E o contrário também: você, ciente disso, quando dá carinho pensa que o outro pode se sentir obrigado a retribuir, então, para que ele não tenha que ser obrigado a nada, você já nem dá o seu carinho, para não constrangê-lo.

2.    Seria porque o carinho rompe o maior limite que temos na vida? O limite do nosso corpo, do que podem fazer com ele? Quando nos encontramos numa era de extremos e distanciamento da natureza, temos contato físico por poucos motivos. Violência e sexo são os mais comuns. Artes, esportes e superpopulação também configuram contatos físicos.  O toque voluntário ou involuntário. A vontade do toque. Quem quer tocar e quem é tocado. Quem quer tocar não sente o mesmo de quem é tocado. Quem é tocado, é tocado pelo corpo do outro e pela expectativa que o outro tem. Em quem exatamente o carinho está a tocar? Ele não sabe. Mas quem é tocado sente (ou pode sentir) o incômodo que vem da possibilidade de quem o acaricia estar projetando no seu objeto acarinhado uma outra pessoa.

3.    A pessoa acarinhada pode estar em outro universo quando vem alguém e o toca, fazendo-o retornar à sua materialidade quando sente outro corpo a tocá-lo.

4.    A pessoa rabugenta pode temer o carinho porque este poderia amaciar o seu coração endurecido. E isso poderia viciar. E então iria sofrer por não ter carinho todas as vezes que quisesse.

5.    O carinho pode irritar porque a pessoa que o faz tem um ar espontâneo, o que te faz lembrar que você não é espontâneo e por isso nunca toca as pessoas. Quando alguém te toca você pode se irritar por descobrir por alguns instantes o que está perdendo quando não toca nas pessoas.

6.    Mas, principalmente, o carinho é uma declaração de amor, uma entrega. E ninguém quer se entregar e nem receber entregas, mesmo havendo amor, não pode ser demais. Ame e não dê vexame.

     7. O carinho desperta paixões, emoções. Desperta e demonstra  responsabilidade. Representa cuidado. E cuidar dá trabalho, ser cuidado também.

Metrô – o buraco nosso de cada dia

Se a noção de espaço muda (interfere) na noção de tempo, então quem se desloca no espaço também se desloca no tempo. Quem anda muito de metrô, por estar em um não-espaço, um túnel, sem nenhuma conexão com o lugar correspondente na superfície, quem fica muito neste não-lugar tem um pouco do seu tempo roubado. 


Sim, todos que gastam horas no transporte perdem seu tempo de vida pois o não-lugar, ou a falta de qualquer referência de lugar, faz com que as pequenas coisas que variam na cidade – no sempre mesmo percurso – não sejam vistas, vivenciadas. Mesmo sendo o mesmo caminho todo dia, se você olha para a paisagem, sempre algo diferente vai surgir, e isso dá a noção de vida, de movimento, de tempo. 


Esse preto do túnel tem um preço bem alto, nos custa o tempo, que nunca é nosso. Talvez isso seja um dos motivos das pessoas serem tão ansiosas no metrô. Nas linhas que têm a parte aberta, com o metrô correndo na superfície, é perceptível um suspiro de alívio no ar quando o trem sai no túnel e encontra a luz do sol.

Rir e chorar na cidade fria

No ônibus…

Um moço gordinho, alto e loiro está de joelhos em seu assento para falar por cima dele com dois moços sentados atrás. Os moços são africanos, vendedores de relógios e bijouterias. Eles dão uma atenção paciente ao moço loiro, que toma uma cerveja e come do salgadinhos dos moços. Em uma curva o moço loiro deixa cair sua lata de cerveja, que derrama rapidamente e molha todo o corredor do ônibus. Ele demonstra estar bêbado. Passa a duras penas pela catraca, cabaleando, solto no ônibus em movimento. Cai sobre uma moça que está atrás dele. O frisson causado por ele é grande, alguns temem que ele caia, outros dão risada. O clima é leve, como se os bêbados de bom coração tivessem algum tipo de licença poética, uma colher de chá…

O moço bêbado vai para o fundo e se aquieta. Páro de notar sua presença. De repente ouço um choro dolorido, logo atrás de mim. Um choro agudo, parecia uma moça. O choro vai ficando mais alto e mais sentido. Não sei o que fazer, a passoa parece inconsolável. Me pergunto: “o que terá acontecido? Será que recebeu uma notícia triste? Mas quem daria uma má notícia para alguém assim, no ônibus? Não podia esperar a pessoa chegar em casa? O que eu faço? Levanto? Dou um abraço?” Então, meio sem saber ao certo o que fazer, olho para trás e o que vejo? O bêbado, deitado, ocupando dois assentos, olhando para um celular e chorando, chorando…

Ô vida!

No metrô…

Estação Butantã.

Alguém está gargalhando. Não consigo ver quem é, mas algumas pessoas que já cruzaram com a gargalhona passam por mim sorrindo também, ou rindo. Caminho um pouco mais e vejo: uma moça de shorts curtos e camiseta regata sentada nas escadas. Está muito frio, eu visto duas blusas e temo que terei frio ainda ao longo da noite. A moça está encolhida, sozinha, e ri, ri muito. Pára alguns instantes e logo recomeça a gargalhar. Justo ela, a única pessoa sem agasalho, aquela que, aparentemente não teria nenhum motivo para rir. O que pensar? Que é loucura? Que ela pode, de fato, ter algo muito engraçado em mente? Que é uma performance? Que, com a risada, ela está criando uma fissura no nosso ego aquecido? Que a adrenalina da coragem de rir alto em público a aquece? Essa cidade me confunde…

O embotamento dos sentidos

Esboço de um tratado sobre os sentidos a partir de conversas com Dani Sou. O termo “embotamento dos sentidos” é de autoria da Dani Sou.

Percebemos o mundo através dos sentidos. São eles que nos conectam ao mundo exterior. Esse mundo exterior entra em cada pessoa pelos seus sentidos: o tato, o olfato, a visão, a audição, o paladar e quem sabe outros ainda não descobertos.

O ser humano interfere no meio e muita dessa interferência tem relação com a maneira como os sentidos dxs outrxs percebem o mundo. Quando o homem faz do rio um esgoto, ele impõe a merda aos sentidos de quem está próximo do rio. Muitas vezes a razão, através da educação, compreende que algo não vai bem e procura se afastar do rio sujo, mas é quando o mau-cheiro invade seu corpo que a compreensão se dá por completo – a repulsa.

O embotamento, ou a invasão dos sentidos, é comum às diferentes classes sociais, mas em polos opostos. O cheiro forte do perfume da pessoa abastada conflita com o cheiro de merda humana na calçada por onde a pessoa passa rapidamente saíndo de dentro de um automóvel e entrando em algum edifício. A classe média e a classe baixa não conseguem fugir dos sons. Seja o pancadão engolido a seco nas periferias das cidades, seja nas músicas ambiente das lojas de departamentos ou elevadores. Será que xs ricxs conseguem algum silêncio? Só se for através de janelas anti-ruídos, porque quem está na cidade ouve o som intermitente dos carros, eles, que impuseram ao mundo um eterno burburinho dos motores. Quem sabe nos condomínios fechados haja o mais próximo que o mundo consegue do silêncio onde vivem pessoas juntas.

O som alto dos carros com rádios e equipamentos sonoros, ou das motos com motores altíssimos faz pensar na cultura estranha do carro como instrumento de poder, e na música alta também, um pequeno poder, o de gerar incômodo sobre o outro. Quiçá uma sensação de pertencimento fugaz à classe dxs poderosxs.

Vivemos numa época em que o sistema consegue nos dar a ilusão de pertencermos a um mundo de oportunidades e privilégios através da ilusão dos nossos sentidos. O açúcar, o doce, a sobremesa. A classe que não come sobremesa é aquela que mais se empanturra de açúcar. Uma lógica reversa e perversa de pegar a carência e invertê-la, transformando-a em fetiche, em vício.

A inversão simulada da pobreza em riqueza também se manifesta pela visão, com uma parcela enorme da população pobre alisando seus cabelos e pintando-os de loiro, parecendo aos olhos de outrxs pobres, serem ricxs (porque o padrão nos faz pensar que uma pessoa loira pode não ser rica, mas uma pessoa rica é sempre loira). Já as mulheres e homens ricos de verdade têm a possibilidade de pagar por cirurgias plásticas que procuram apagar o tempo dos seus rostos, parecendo, aos olhos iludidos, serem ainda jovens, e sem pereceberem que, com o tempo, apagam também seus traços, suas histórias, suas faces.

Os perfumes presentes em xampús, cremes, sabonetes, sabões de lavar roupas, amaciantes. Esses cheiros tão fortes mas tão naturalizados em nosso cotidiano, servem para lembrar-nos a todxs que não somos animais, que nossos odores devem ser apaziguados e suprimidos. Deve estar na constituição do mundo: “todo ser humano, independentemente de credo, raça ou classe, tem o direito e o dever de ficar cheiroso”. E a qualidade desses odores, o reconhecimento que se tem deles, vai trazer a distinção social. A pessoa de classe baixa tem acesso ao perfume, e ele também é forte, mas a fragrância é o cheiro do dinheiro, do preço, dependendo dela o cheiro forte é sublime ou vulgar. Nesses dois casos, ainda que de modo oposto dentro de uma mesma linguagem (o perfume), as pessoas ainda estão do lado dos civilizados, seja rico ou seja pobre. Caso você cheire a animal, então você pertence à selva, mesmo ela sendo o centro da cidade, essa é uma quase classe social, uma sub-classe, abaixo da baixa.

Do tato, que podemos dizer da violência, das agressões, do estupro? O cúmulo do embotamento desse sentido é a sensação precisa do nosso não acesso ao nosso corpo. No ônibus lotado, nos corpos esmagados um contra o outro, nas taxas exorbitantes de feminicídio, de genocídio da população negra, das pessoas encarceradas – não temos acesso ao nosso corpo, ao nosso tato, à nossa vida. Adeus sensibilidade, a casca fica grossa, ou fica só o couro.

A opressão surge através dos sentidos. Seja através do nosso não-acesso a eles ou através da imposição de informações sensoriais aos nossos sentidos como formas de doutrinação e conformação.

Na cidade isso fica mais evidente, mas é possível notar de muitas formas as opressões aos sentidos em qualquer lugar do Brasil – ou do mundo.

O apelo aos sentidos e ao seu não-descanso gera seres insensíveis, como já nos apontou Georg Simmel, seres amortecidos, exaustos, embotados. E esses seres insensíveis são a cria mais perfeita do capitalismo, pois não tendo acesso aos seus sentidos, não sabem sequer de suas naturezas e, desconhecendo a si mesmos, são incapazes de criar a sua realidade, e por consequência a sua sociedade.

Com os sentidos embotados nos tornamos autômatxs, constantemente invadidxs e estupradxs, ficamos insensíveis e desconhecemos o direito que temos às nossas sensações e à produção de realidade.

Oxum, fala comigo?!

Hoje descobri que sou de Oxum. Ela vem me orientando. Fala comigo, Oxum. Vem no meu sonho sussurrar, como um rio que desce pelas pedras. O que se pode fazer? Fala comigo, Oxum, me usa para limpar os rios. Abre os caminhos das minhas ideias. Como posso ser instrumento de proteção e recuperação dos rios da minha terra?


Eu escuto “derrube o capitalismo” sussurrado em meu ouvido desde que me conheço por gente, agora eu sei, é ela…


Mas como, Oxum, como?

O cheiro das ervas

Abro o forno e em ondas quentes o alecrim, o manjericão e o alho, aquecidos pelo azeite, invadem meu corpo e me trazem uma memória ancestral. Os bosques verde-escuro, as casas de pedra, o fogo. Me lembram do frio e do aquecimento, do acolhimento que o odor da comida dá à minha fome ancestral. E é verdade. Eu como hoje as mesmas plantas que comiam meus ancestrais. O alecrim, o alho… é o mesmo alho! Ou quase? É o mesmo fogo, a mesma batata, o mesmo ser humano que come, no entanto, está tudo diferente. Na estrutura das células mora nossa memória ancestral. No cheiro do alecrim eu percebo que minhas células são antigas, tão antigas quanto a humanidade. 

Hoje vi uma goiabeira em más condições, no meio de um cruzamento, espremida num canteiro apertado, cheia de fuligem e com o cimento impedindo seu crescimento e a absorção de água. Ela, contudo, tinha algumas poucas flores, e se a deixassem em paz ela certamente daria perfeitas goiabas. As mesmas goiabas de sempre. Ou quase.

PASSION FRUIT – A fruta da paixão

O maracujá, eu o desejo tanto! Desde quando ganhei uma muda espero pelo maracujá. O pé é fraco e não deslanchou, mas também não morreu. 

Eu, na ânsia de fazer tudo o que eu podia para melhorar a vida daquele serzinho, ia conduzindo os ramos para um barbante, onde eles poderiam se agarrar e ganhar mundo. Acontece que toda vez que fui querer juntar o ramo do maracujá com o barbante eu enverguei demais o ramo e ele levemente se quebrou. E assim, com minha ansiedade, eu atrasava o rolê dele e, consequentemente, o meu.

Mas agora tem um ramo novo, todo forte. Ele não está indo na direção do barbante, mas está crescendo sem precisar se agarrar em nada! Se eu conseguir não quebrá-lo com minha ansiedade e tudo aquilo que eu acho que é melhor para ele, acho que, quem sabe, eu consiga um dia colher maracujás. É só não tocar nele, não esperar tanto dele, deixar que cresça como e para onde quiser.

É a fruta da paixão, é a flor roxa que nasce no coração dos trouxa! – pensei. Esse é o ensinamento que o  pé de maracujá tem me dado.

O rosto dos vivos e o rosto dos mortos

Sempre me impressionou o rosto dos mortos, como é diferente da expressão da pessoa viva. Parece mesmo outra pessoa, irreconhecível.

Isso me faz pensar que o nosso rosto vivo é composto muito mais pela expressão que damos a ele, através de tensões e relaxamentos, do que alguma natureza, genética ou estética (predominantemente). E quando a pessoa morre é que percebemos que expressão ela dava a si mesma.

Não existe natureza e neutralidade quando se trata da formação do nosso caráter e personalidade. Mas o que de fato a gente escolhe quando formamos nosso ser?

Me parece que escolhemos apenas como lidar com as forças que agem sobre nós, mas jamais essas forças são controladas por nós. E o nosso rosto vivo é o resultado dessa lida.

Já nosso rosto morto é o resultado de nenhuma força e nenhuma lida, é um rosto que jamais conheceremos em vida.