Mãos trabalhadoras

Como são belas

As mãos das trabalhadoras

Fortes, musculosas

Delicadas

Bem cuidadas

Arrumam a roupa

Apertam botões

Mexem na bolsa

Quanto tempo leva

Para as mãos ficarem assim?

Torneadas

Esculpidas

Trabalhadas

Mãos de quem as usa

Para fazer a comida

Para fazer acontecer

O mundo ao nosso redor

Quantas coisas essas mãos fizeram?

Quantos cabelos pentearam?

Quantos panos torceram?

Quantas mandiocas já colheram?

Mãos que acalmam e aconselham

Mãos que seguram firme e não soltam.

Seja barraqueira, seja heroína – Relato de uma barraqueira

Na minha numerosa família tem só três barraqueiras: eu, minha mãe e minha tia Sandra. Não é que a gente não é bem vista por termos essa tática de sobrevivência, ninguém nos critica, mas não é bem o comportamento geral, nem na minha família, nem no meu país.

Por adotar a tática barraqueira eu já estive em diversas situações e já ouvi narrativas históricas de barracos familiares também.

Quando eu falo “barraco” não estou falando da modalidade “moradia” mas sim de fazer escândalo por um motivo de justiça (na maioria das vezes).

Barraco é bem diferente de “piti”, barraco é um pedido de socorro de alguém oprimido, que clama pela justiça social, que envolve toda a comunidade em uma questão aparentemente pessoal ou individual. Piti é mimo, é gente empanturrada reclamando ou fazendo valer seus privilégios.

Eu não tenho vergonha nenhuma de ser barraqueira, mas confesso que é desgastante. O barraco é algo que se faz necessário, muitas vezes, mais do que uma escolha. Pode acontecer a qualquer momento. Eu jamais me perdoaria por não ter armado alguns barracos que armei, e me arrependo muito de alguns que eu não armei.

Eu cresci, então, com essa barraqueira se formando dentro de mim e (vi)vendo barracos, que mesmo me deixando muito tensa e desgastada, também me lavavam a alma e me davam uma sensação de que “acordos sociais de justiça” existiam.

Não sei se eu que cresci, ou se o mundo mudou, ou se os dois. Mas já adulta me deparei com outros olhares ao meu redor quando armava algum barraco. Olhares de incômodo e não de cumplicidade. Como se, de repente, eu me desse conta de que incomodava mais a minha reclamação do que a situação que a gerou. Como se ninguém se desse conta de que eu estava reclamando de algo que também os afetava, ou melhor, que os afeta sim, mas eles aguentam bravamente sem reclamar e que, se você reclama, é porque você “não aguenta”.

Pode ser também que os olhares de incômodo frente a um barraco se voltem contra a barraqueira, ou que a denúncia de uma injustiça se volte contra o denunciante, porque a barraqueira devolve a responsabilidade de uma situação problemática para as pessoas que estão ao redor. NÓS vamos deixar isso acontecer? Ninguém vai fazer nada? Seremos todxs cúmplices, esse é nosso acordo? Daí vem o escândalo: da abertura, do escancaramento da situação, como se todos se desnudassem um pouco, mostrando quem são frente a opressões, desigualdades, injustiças, desequilíbrios, destruições, ameaças. De que lado ficam. A barraqueira traça uma linha de giz no chão e pergunta quem fica de cada lado da linha, e acaba fazendo com que as pessoas façam escolhas. Silenciar é uma delas. E todas as escolhas, as posturas e os comportamentos são sociais e cultivados em alguma instância, e têm suas razões.

Mas tem também quem compre o barraco alheio, não são muitxs, mas acontece. Isso salva o rolê, tanto do barraco propriamente dito quanto do desgaste emocional e da sensação de nadar contra a corrente sempre na vida.

Eu não diria que nosso povo quer reformatar seus acordos sociais de justiça pra pior, mas sinto que isso vem acontecendo porque estamos muito cansadxs sempre. E armar barraco cansa. E tem a vulnerabilidade também – armar barraco, dependendo da situação, pode te custar a vida. E cada vez mais.

O barraco, ao meu ver, é um comportamento mais feminino e do universo LGBTQIA+, quem sabe seja uma herança africana na nossa cultura. Não sei mesmo o motivo, mas desconfio que, por ser uma estratégia de sobrevivência, ele seja mais demandado por populações oprimidas sistemica, social e individualmente.

“É deselegante”… já ouvi isso também, que você perde a razão dependendo do jeito que você fala. Mas forma e conteúdo estão muito relacionados. Eu consigo falar “de boa” também, mas a forma da mensagem, ou seja, no formato “barraco”, tem uma razão de ser. Comigo o barraco não é um lance “me sobe o sangue”, “eu perco a cabeça”, “quando eu vi já estava lá”. Não totalmente. É bem oxigenado. Se eu não estiver com fome, eu diria que sou até educada nos barracos. Eu procuro não usar palavrão, esse é um dos meus únicos critérios. Não sei se é porque sou professora ou porque vivo no Brasil, mas aprendi que, quando você quer lacrar no barraco, eleve o tom mas sem abaixar o nível. Estou falando por mim, tá? Essa é a minha estratégia pra um barraco ter algum êxito sem descambar.

O barraco almeja muito mais levantar o debate do que resolver a situação. Penso isso quando dizem que não adianta nada fazer barraco, que as coisas não mudam, que só vai gerar conflito. Exatamente porque a situação problemática é complexa e envolve a todxs que as pessoas ao redor são conclamadas pela barraqueira para participarem do desfecho, da solução.

Teve até um barraco que me gravaram e jogaram na internet! Daí, nos comentários, ficou equilibrado os que me defenderam (e à causa defendida no barraco) e os que me atacaram. Ufa! Mas complexo isso de gravar barraco e jogar na fogueira das mídias sociais. Não concordo, não. Temos que ter direito à privacidade até mesmo num barraco. Nada de sensacionalismo, barraco não é sensacionalismo!

Obviamente, existem momentos mais adequados e menos adequados para barracos. Não dá pra recorrer sempre a esse método, pois dessa forma ele se desgasta e perde a sua eficácia. Percebo também que, muitas vezes, o barraco se dá muito mais pela recepção da mensagem pela pessoa “corrigida” do que como uma agressão ou afronta por parte da barraqueira. Falar o óbvio é considerado já um princípio de barraco no país das atenuantes.

Os motivos do barraco dizem muito sobre quem nós somos e nossas escolhas e universos pessoais. Qual é o nosso limite? De qual ponto a gente não deixa passar? O que não pode passar batido? Quando é a hora de envolver mais gente na questão? Quando é a hora de intervir um uma situação? A questão é só minha ou é de mais gente ao meu redor? Acho que nesse sentido todo mundo já armou algum barraco na vida, uns mais, outros menos, alguns nem consideraram que o que fizeram foi barraco, mas o revide, o não-silenciar, é quase instintivo, eu acho. Fica o estigma de barraqueira para quem tem mais frequência nesse lapso de “isso eu não vou deixar passar” ou para quem tem a manha de comprar barracos alheios.

O barraco é o recurso de quem só tem o peito e a voz para enfrentar uma situação injusta ou degradante, mas sabe que tem consigo uma comunidade com acordos sociais de justiça, ainda que eles pareçam ofuscados e fragilizados pelo massacre nosso de cada dia chamado capitalismo.

Mas tudo isso eu intuia sem colocar assim em ideias delineadas, até o dia em que eu estava passando de ônibus e vi uma pixação bem pequena, numa porta de metal dessas de correr. Parecia até escrito com branquinho ou canetinha. Dizia: seja barraqueira, seja heroína. Aí eu vi vantagem mesmo em ser barraqueira. Não é que eu queira me gabar nem nada, nem me envaidecer ou hypar, nem mesmo comercializar ou propagandear um dom. Eu quero é enaltecer o barraco, porque ele é fundamental para a nossa sobrevivência, tanto individual quanto social. Se ser barraqueira é não se calar, e não se calar é ser heroína, então esse pixo tá certinho.

Valha-me Anhangá!

Você que vê o rio
E quer canalizar
Anhangá vai te afogar!

Você que vê o peixe
E quer logo pescar
Anhangá vai te fisgar!

Você que vê bicho
E só pensa em matar
Anhangá vai te caçar!

Você que vê a mata
E quer derrubar
Anhangá vai te cortar!

Você que vê gente
E já quer explorar
Anhangá vai se vingar!

Você que vê curva
E quer retificar
Anhangá vai te emendar!

Você que vê terra
E já vem asfaltar
Anhangá vai te enterrar!

Você que vê público
E quer privatizar
Anhangá vem te buscar!

Você que está certo
De que nesse mundo
Justiça não há
Quando dormir
E começar a sonhar
Verá o implacável Anhangá.

Ele vem e não há de falhar
Quando ele assobiar
Não adianta correr
Não adianta implorar
Nem tente se esconder
Pois ele há de te achar.

Só o lixo prospera

Não paro de sentir saudades do tempo em que o mundo parecia ter futuro.

Tinha esse clima no ar.

Será que era porque eu era criança? Anos 1980, 1990. O país saindo da ditadura…

Os jovens pareciam mais saudáveis.

A Mata Atlântica tinha redutos de preservação. As matas preservadas tinham bichos. O microplástico não estava em toda a água do planeta.

Ainda existia uma ideia de liberdade, ou uma busca por corpos mais livres e leves.

Eu sentia o viver no mundo como se fosse sempre logo depois da chuva. O ar era poluído mas tinha seus momentos de frescor. O poluído ainda assustava.

Hoje o poluído é a regra e o ar puro é que assusta.

Tudo se esvaziou. O presente nada mais é que uma eterna sequência de agoras. Sem passado e sem futuro.

Tem quem ponha filhos no mundo e os crie.

Eu gosto de plantar.

Todas as sementes devem cumprir sua missão na terra, germinar. Mesmo que depois morram. Elas topam.

As sementes não escolhem o melhor lugar. Elas precisam lidar com o fato de que não podem se mover por conta própria. Onde calhar delas caírem, elas nascem. Se der, elas dão!

Isso eu entendo da vida.

Não importa se a vida da gente não é como uma árvore centenária.

Tem milhões e milhões de sementes que nascem e vivem pouco. Morrem jovens. Para elas, valeu. Mais vale viver pouco do que não viver.

Por outro lado…

Se a natureza é perfeita e levou milhões de anos para formar esse corpo fantástico.

Se a natureza é sábia e levou milhões de anos para desenvolver as plantas, os animais, os rios e o ambientes favoráveis à vida.

Por que morrem crianças e jovens?

Por que as árvores não vivem todas por centenas de anos?

Por que quase nada que não seja lixo prospera nesse mundo?

Por que, entre aqueles que vivem e podem seguir vivendo, há tantos que escolhem não viver?

Infinitar

Sempre que nos deparamos com uma concha grande, daquelas espiraladas (tão raras hoje em dia), nosso instinto mais primitivo é lavá-la à orelha.

Isso acontece porque as conchas têm a capacidade de criar infinitos…

Seja qual for o lugar ou situação em que a concha é levada à orelha, ela consegue nos levar para o mar, para o imenso e misterioso mar.

A capacidade de infinitar momentos da vida limitada é a magia inexplicável das conchas espiraladas, e o fato delas virem do mar não deve ser mero acaso.

A sensação de infinitação provavelmente vem do fato de todos termos vindo do infinito, e mais precisamente, no planetinha azul, do mar.

As conchas trazem consigo o infinito, porque carregam sua origem para onde quer que sejam levadas.

Elas não nos deixam esquecer nossa infinitude enquanto vida continuada, enquanto areia na praia e gota no oceano, enquanto pó de estrelas no universo que tem lá fora e aqui dentro.

Infinitar: ação que as conchas espiraladas realizam quando levadas à orelha e escutadas com atenção.

Quem descobriu o Brasil?

Essa cena aconteceu hoje. Eu a presenciei e juro que é tudo verdade.

Estavam em frente à biblioteca Mário de Andrade uma mulher em situação de rua dormindo e algumas mulheres tentando acordá-la para dar a ela uma sacola com alguma coisa dentro que parecia uma marmita.

A moça que dormia era negra.

As moças que doavam, brancas.

Depois de algumas tentativas de acordar a moça que dormia, deixaram a sacola e já iam partir quando, de sopetão, a moça acordou e lançou, energica e focadamente uma pergunta:

– Quem descobriu o Brasil?!

A mulher, que tentou avisar sobre a sacola que deixara, respondeu de pronto:

-Pedro Álvares Cabral!

A moça deitada emendou com um misto de doçura e sabedoria:

-Nããão, moça! Fomos nós, mulheres!

Preciso dizer que, ao ver aquilo, abri um sorriso gigante por dentro da minha máscara, em seguida me vieram lágrimas como um golpe de chuva numa tarde ensolarada de verão.

A elegância da população em situação de rua

Já faz um tempo que tenho reparado na elegância das pessoas em situação de rua. A maioria das pessoas que vejo nesta condição aqui na cidade de São Paulo, e não é pouca gente, é muito educada, mais que educada, é elegante.

Esse fato é instigante – da elegância justamente naquelas pessoas que julgamos incivilizadas, destituídas de qualquer valor, de qualquer luxo – numa sociedade que valoriza as pessoas pelo que elas têm, e não pela sua ética, altruísmo e por suas atitudes. E não sejamos hipócritas, a falta de higiene, de intimidade, e da possibilidade de abrigar-se – enquanto direitos básicos, é sim fator decisivo para a maneira como essas pessoas são vistas e tratadas pela sociedade.

Vários motivos para esse fenômeno, o da elegância das pessoas em situação de rua, me ocorrem…

A violência estatal (da ordem, que só é eficaz na repressão aos mais fracos e vulneráveis e na proteção ao patrimônio) e a violência da sociedade, com seu nojo, seu desprezo, seu julgamento e seu higienismo letal geraram uma população de gatos escaldados, de sobreviventes ao pior do capitalismo cristão. Pessoas que sabem o peso da lei, do abuso, da desvalorização da vida, da falta de empatia, do frio, da fome, do medo. Precisam ser verdadeiros lordes e damas para não serem destratadas. Precisam se superhumanizar para serem visíveis, quando uma sociedade consegue apagar da paisagem pessoas sem nem usar inteligência artificial. Não podem assustar, porque, para essa população, assustar é crime. Para essas pessoas ter dois olhos, uma boca, um cérebro, falar a mesma língua, nascer no mesmo país, sentir amor, tristeza e frio não as faz iguais às pessoas “comuns”. O que é ser uma pessoa “comum”? Seria ter “o básico”? Seria o básico aquilo que torna a vida digna, que faz a existência individual de uma pessoa ser reconhecida pela sociedade como “vida que merece ser vivida”. Como e quando chegamos, enquanto sociedade, nessa distinção entre a vida que “merece” ser vivida e a vida que não? Tanta violência, estatal, social, ideológica, emocional, se converte em comportamento. A elegância, a cortesia, a gentileza, a franqueza, acabam sendo as únicas ferramentas possíveis de sobrevivência em uma sociedade que valoriza a civilidade, mas só para quem não tem dinheiro. Quem tem dinheiro não precisa ser civilizado.

A partir dessa posição em que são colocadas na sociedade, a da margem da margem, da vida menos merecedora de ser vivida, essas pessoas percebem coisas muito diferentes do senso comum, vão diametralmente na direção contrária ao comportamento geral, vivem e criam, de fato, um mundo paralelo. Vivenciam muita solidariedade – ainda que haja sempre violência em todas as situações de opressão e falta do básico – e experimentam de uma liberdade que desconhecemos – nós, as pessoas escravizadas pelo trabalho, pela higiene, pelas contas. Essa população vive e mostra a libertação de um sistema hegemônico e assassino, ainda que não seja por escolha própria. E o preço dessa libertação é a marginalização completa e enormes sofrimentos. Mas a superação das dores e carências e a sobreviência num contexto tão massacrante tornam essas pessoas guardiãs de um jeito outro de viver. Essa população, os sem teto, guardadas as proproções de sua diversidade, criam e vivem sob outros valores, desegemonizando o sistema capitalista, seja politica, econômica, social ou emocionalmente. São as pessoas que o sistema matou, mas não morreram. E elas sobreviveram para contar, aliás, elas nos contam todos os dias como é a vida do lado de lá desse mundo que julgamos único e imutável. Nos contam sobre paz, amizade, solidariedade, sobre fé, perseverança, sobre amor, companheirismo, sobre filosofia, sociologia, economia, ecologia, ética… conceitos já colocados em cheque pelo nosso atual acordo social. Deste modo, ainda que não sejam conscientes dessa “elegância” (muitas o são) as pessoas em situação de rua a praticam naturalmente. Não me parece ser um esforço, uma falsa educação, carregada de rancores e inveja, pelo contrário. É a mais pura elegância, porque é baseada na verdadeira nobreza.

Outro fator que me parece plausível é o fato dessa população não ter acesso à intimidade. Imagine você o que seria da sua vida sem o momento do grotesco escondido, sem o aconchego despreocupado do largar-se dormindo, sem ter um lugar seguro e protegido para chorar, para fazer sexo, para defecar, comer, para o que quer que as pessoam façam nos momentos de intimidade e solitude. E não ter direito à intimidade não isenta essas pessoas das convenções sociais, pelo contrário, precisam provar sua civilidade o tempo todo, pois suas vestes, sua condição, seu odor, depõem contra todos os seus direitos enquanto seres humanos. Tudo nelas parece repugante aos olhos de uma sociedade que ama o cloro, que passa Veja e álcool, e lava com Omo, passa desodorante, desinfetante, perfume francês e “Bom ar”.

Imagine, agora, como seria se você tivesse visitas em sua casa todos os dias de sua vida. O resultado de ser social o tempo todo me parece que é uma elegância, uma discrição, uma notável capacidade de concentração e autocontrole. Uma consciência de si que está sempre em relação às demais pessoas, uma invidualidade que se constrói em completa simbiose com a coletividade. E o trato de quem tem essa vivência com as demais pessoas só pode ser lapidado, polido, elegante, modesto, hospitaleiro.

Está aí para quem quiser ver, a maior elegância da cidade está dormindo em papelões nas calçadas.

A economia da desavença

Era uma vez uma sociedade na qual as pessoas eram influenciadas diretamente por pequenos aparelhos com uma tela luminosa. Ali, através daquela tela, geração após geração, as pessoas aprendiam o seu comportamento, seus gostos, suas atitudes e valores. Nessa sociedade, a esmagadora maioria das pessoas, enquanto era mantida na mais perversa pobreza, trabalhava para enriquecer algumas poucas pessoas.

Mas como esses aparelhos conseguiam controlar, ensinar, manipular e convencer tanta gente a se escravizar (aparentemente) voluntariamente por um sistema que as oprime? Uma das respostas é: dando às pessoas coisas que elas realmente precisam, como a possibilidade de se comunicarem com pessoas que estão distantes. A partir dessa necessidade tecnológica (que já foi resolvida por diversos meios como o telefone e a internet), empresas começaram a organizar e analisar os dados coletados por esses aparelhos de tela luminosa, e com isso, foram e são feitos estudos massivos do comportamento das pessoas.

O fato é que essa sociedade dependia desses aparelhos (ou pelo menos achava que dependia) para se comunicar, pois as pessoas mal falavam umas com as outras presencialmente, e passavam a maior parte do seu tempo usando esse aparelho.

Quem analisava toda a informação gerada pelos aparelhos sobre as pessoas tinha muito controle sobre essa sociedade. Dominava o consumo, o desejo, o comportamento socialmente aceito, elegia governantes, linchava indivíduos e crenças, julgava a seu bel prazer.

Quem analisava toda a informação sobre as pessoas (que vinha de seus aparelhos de comunicação) sabia mais sobre as pessoas do que elas mesmas. Tornou-se um oráculo, um deus supremo.

Tinha o agravante que as pessoas nessa sociedade eram fascinadas e se viciavam no uso desses aparelhos de tela luminosa desde recém nascidas, de modo que mal podiam se defender dessa sina.

Quem analisava as informações sobre as pessoas organizava dados que coletava e traçava perfis completos de grupos enormes de pessoas dessa sociedade. Para cada perfil/pessoa, era criado todo um universo virtual do que ela deveria consumir, ler, pensar, dizer, fazer. A resposta social à influência da informação enviada minuciosa e precisamente para cada perfil/pessoa era notável e confirmadora da eficácia dessa análise de dados.

O domínio daqueles que analisavam as informações sobre as pessoas chegou ao ponto deles atrasarem ou adiatarem o tempo dessa sociedade, percebendo que podiam gerar guerras, impedir ou influenciar atividades, podiam tudo.

Foi um dia como outro qualquer quando uma grande empresa de comunicação decidiu atrasar o relógio de alguns dos seus aparelhos para analisar a reação das pessoas a essa interferência. Colocar as pessoas em diferentes tempos (horários) causou grandes desencontros, muitos atrasos, pessoas chateadas com outras por não responderem às suas mensagens quando estavam precisando. Essa interferência no tempo (horário) dos aparelhos gerou até mortes.

Os dados mostraram que as discussões geradas por tais desencontros criaram um aumento no fluxo de informação, o que gerou mais coleta de dados e mais fluxo financeiro. Rompidas, as pessoas passaram a consumir mais, a usar mais aplicativos de encontros, passaram a ficar mais horas inativas, apenas em frente aos seus aparelhos, gerando mais e mais dados.

Depois de um tempo, as grandes empresas de comunicação passaram a não mais mexer no relógio dos aparelhos de maneira orquestrada, pois já despertavam desconfiança na sociedade a respeito de tal prática. Começaram, então, a atrasar ou adiantar o envio e chegada das mensagens, alterando seus horários de envio e recebimento. Isso mexeu diretamente com a intimidade das pessoas, pois o tempo de resposta em uma conversa diz muito sobre o ritmo que a conversa terá, e sobre a equação entre ação e espectativa que as pessoas tinham umas com as outras.

Com isso, de tempos em tempos, temporadas de grandes desavenças assolavam essa sociedade, alguns culpavam os astros, outros culpavam seus semelhantes, por tais e tais comportamentos, enquanto isso alguns poucos lucravam com a desavença diariamente, noticiando desavenças dos famosos ou dos mais vulneráveis. Entre os poucos, pouquíssimos lucravam exponencialmente mais cada vez que esse “gap” nas mensagens entrava em ação. Era um “agito” social, um incremento lucrativo na realidade.

Era preciso, porém, ter cuidado com a “economia das desavenças” pois, quando ela começou a gerar dados de mortes excessivas em decorrência de sua prática, o mercado consumidor e o uso dos aparelhos (e geração de dados) decaiu.

Então os poucos e os pouquíssimos começaram a calcular o grau de destruição social que a prática de mexer com o tempo das mensagens poderia causar. E preocuparam-se, por algum tempo, em dosar esse incremento lucrativo na realidade.

Tudo ia bem com a economia da desavenças, até acontecer o inesperado: as pessoas se acostumaram com a possibilidade de que as relações entre elas podem ser qualquer coisa – o compromisso, a simples ideia de combinar ou dar sua palavra para qualquer ação era absolutamente vazia. Ninguém contava com ninguém, nada de acordos. Regras sim, isso tinha bastante, e todxs procuravam seguir as normas. Mas acordos… consensos, combinados, planos… passaram a não mais existir. No começo as pessoas se magoavam, muitas rupturas aconteceram, grupos e comunidades inteiras ruíram. Depois houve uma acomodação social. Um novo acordo. Desde quando alguém esperava algo de outro alguém? Não espere nada de ninguém, não conte com ninguém, esse era o consenso. O outro não existe – o individualismo em seu estado puro.

Com isso, depois dessa surpreendente acomodação social, aqueles poucos milionários deixaram de lucrar exponencialmente mais com o “gap” da desavença, mas graças a deus continuaram garantindo sua posição de extrema desigualdade em relação ao povo que os mantém.

Tudo ficou igual, só um pouco pior. Mas poucos perceberam…