Estava eu caminhando ali na região da zona cerealista e tinha em mãos uma sacola com pimentas frescas que havia comprado há pouco. Uma criança, um menino de uns 6 anos se aproxima e pede esmolas. Eu não tinha nada para dar, por isso, tristemente, neguei. Ele, então, me pede uma pimenta. Fiquei animada de poder dar a ele alguma coisa, e enquanto eu pego uma pimenta dentro da sacola pergunto a ele o que vai fazer com a pimenta, e ele responde: vou plantar!
Métodos populares de persuasão
Dia desses eu fui no postinho de saúde aqui perto de casa, e, como a espera é grande, observei as pessoas desse país muito louco chamado Brasil.
Uma senhora é chamada ao guichê e tenta marcar consulta com o dentista. A atendente afirma que não tem horários e nem sequer previsão de abertura de nova agenda, ou seja, nada de dentista.
A senhora, então, afirma que é paciente do dentista e do postinho há anos, que fez tratamento dentário ali (nesse momento ela tira a máscara e mostra os dentes pra atendente). Ela diz também que aquele é o melhor postinho que ela já foi, que ele é ótimo mesmo, que tem muitos postinhos mas aquele é o melhor. Nisso passa uma outra senhora que, escutando a conversa, endossa a fala da primeira senhora dizendo que o que ela diz é verdade.
A atendente faz lá seu trabalho, e enquanto ela busca alernativas a senhora continua seus elogios à unidade básica de saúde do bairro. Então a atendente entrega um papel à senhora e diz para ela ir ao corredor à direita. A senhora, sem entender se tinha conseguido ou não sua consulta no dentista, pergunta: “e a consulta?”. A atendente responde: “é agora mesmo, senhora, pode ir lá.”
Método de persuasão devidamente anotado pela observadora.
Mãos trabalhadoras
Como são belas
As mãos das trabalhadoras
Fortes, musculosas
Delicadas
Bem cuidadas
Arrumam a roupa
Apertam botões
Mexem na bolsa
Quanto tempo leva
Para as mãos ficarem assim?
Torneadas
Esculpidas
Trabalhadas
Mãos de quem as usa
Para fazer a comida
Para fazer acontecer
O mundo ao nosso redor
Quantas coisas essas mãos fizeram?
Quantos cabelos pentearam?
Quantos panos torceram?
Quantas mandiocas já colheram?
Mãos que acalmam e aconselham
Mãos que seguram firme e não soltam.
FUNK SENSACIONALISTA
RIOS LIVRES
Seja barraqueira, seja heroína – Relato de uma barraqueira
Na minha numerosa família tem só três barraqueiras: eu, minha mãe e minha tia Sandra. Não é que a gente não é bem vista por termos essa tática de sobrevivência, ninguém nos critica, mas não é bem o comportamento geral, nem na minha família, nem no meu país.
Por adotar a tática barraqueira eu já estive em diversas situações e já ouvi narrativas históricas de barracos familiares também.
Quando eu falo “barraco” não estou falando da modalidade “moradia” mas sim de fazer escândalo por um motivo de justiça (na maioria das vezes).
Barraco é bem diferente de “piti”, barraco é um pedido de socorro de alguém oprimido, que clama pela justiça social, que envolve toda a comunidade em uma questão aparentemente pessoal ou individual. Piti é mimo, é gente empanturrada reclamando ou fazendo valer seus privilégios.
Eu não tenho vergonha nenhuma de ser barraqueira, mas confesso que é desgastante. O barraco é algo que se faz necessário, muitas vezes, mais do que uma escolha. Pode acontecer a qualquer momento. Eu jamais me perdoaria por não ter armado alguns barracos que armei, e me arrependo muito de alguns que eu não armei.
Eu cresci, então, com essa barraqueira se formando dentro de mim e (vi)vendo barracos, que mesmo me deixando muito tensa e desgastada, também me lavavam a alma e me davam uma sensação de que “acordos sociais de justiça” existiam.
Não sei se eu que cresci, ou se o mundo mudou, ou se os dois. Mas já adulta me deparei com outros olhares ao meu redor quando armava algum barraco. Olhares de incômodo e não de cumplicidade. Como se, de repente, eu me desse conta de que incomodava mais a minha reclamação do que a situação que a gerou. Como se ninguém se desse conta de que eu estava reclamando de algo que também os afetava, ou melhor, que os afeta sim, mas eles aguentam bravamente sem reclamar e que, se você reclama, é porque você “não aguenta”.
Pode ser também que os olhares de incômodo frente a um barraco se voltem contra a barraqueira, ou que a denúncia de uma injustiça se volte contra o denunciante, porque a barraqueira devolve a responsabilidade de uma situação problemática para as pessoas que estão ao redor. NÓS vamos deixar isso acontecer? Ninguém vai fazer nada? Seremos todxs cúmplices, esse é nosso acordo? Daí vem o escândalo: da abertura, do escancaramento da situação, como se todos se desnudassem um pouco, mostrando quem são frente a opressões, desigualdades, injustiças, desequilíbrios, destruições, ameaças. De que lado ficam. A barraqueira traça uma linha de giz no chão e pergunta quem fica de cada lado da linha, e acaba fazendo com que as pessoas façam escolhas. Silenciar é uma delas. E todas as escolhas, as posturas e os comportamentos são sociais e cultivados em alguma instância, e têm suas razões.
Mas tem também quem compre o barraco alheio, não são muitxs, mas acontece. Isso salva o rolê, tanto do barraco propriamente dito quanto do desgaste emocional e da sensação de nadar contra a corrente sempre na vida.
Eu não diria que nosso povo quer reformatar seus acordos sociais de justiça pra pior, mas sinto que isso vem acontecendo porque estamos muito cansadxs sempre. E armar barraco cansa. E tem a vulnerabilidade também – armar barraco, dependendo da situação, pode te custar a vida. E cada vez mais.
O barraco, ao meu ver, é um comportamento mais feminino e do universo LGBTQIA+, quem sabe seja uma herança africana na nossa cultura. Não sei mesmo o motivo, mas desconfio que, por ser uma estratégia de sobrevivência, ele seja mais demandado por populações oprimidas sistemica, social e individualmente.
“É deselegante”… já ouvi isso também, que você perde a razão dependendo do jeito que você fala. Mas forma e conteúdo estão muito relacionados. Eu consigo falar “de boa” também, mas a forma da mensagem, ou seja, no formato “barraco”, tem uma razão de ser. Comigo o barraco não é um lance “me sobe o sangue”, “eu perco a cabeça”, “quando eu vi já estava lá”. Não totalmente. É bem oxigenado. Se eu não estiver com fome, eu diria que sou até educada nos barracos. Eu procuro não usar palavrão, esse é um dos meus únicos critérios. Não sei se é porque sou professora ou porque vivo no Brasil, mas aprendi que, quando você quer lacrar no barraco, eleve o tom mas sem abaixar o nível. Estou falando por mim, tá? Essa é a minha estratégia pra um barraco ter algum êxito sem descambar.
O barraco almeja muito mais levantar o debate do que resolver a situação. Penso isso quando dizem que não adianta nada fazer barraco, que as coisas não mudam, que só vai gerar conflito. Exatamente porque a situação problemática é complexa e envolve a todxs que as pessoas ao redor são conclamadas pela barraqueira para participarem do desfecho, da solução.
Teve até um barraco que me gravaram e jogaram na internet! Daí, nos comentários, ficou equilibrado os que me defenderam (e à causa defendida no barraco) e os que me atacaram. Ufa! Mas complexo isso de gravar barraco e jogar na fogueira das mídias sociais. Não concordo, não. Temos que ter direito à privacidade até mesmo num barraco. Nada de sensacionalismo, barraco não é sensacionalismo!
Obviamente, existem momentos mais adequados e menos adequados para barracos. Não dá pra recorrer sempre a esse método, pois dessa forma ele se desgasta e perde a sua eficácia. Percebo também que, muitas vezes, o barraco se dá muito mais pela recepção da mensagem pela pessoa “corrigida” do que como uma agressão ou afronta por parte da barraqueira. Falar o óbvio é considerado já um princípio de barraco no país das atenuantes.
Os motivos do barraco dizem muito sobre quem nós somos e nossas escolhas e universos pessoais. Qual é o nosso limite? De qual ponto a gente não deixa passar? O que não pode passar batido? Quando é a hora de envolver mais gente na questão? Quando é a hora de intervir um uma situação? A questão é só minha ou é de mais gente ao meu redor? Acho que nesse sentido todo mundo já armou algum barraco na vida, uns mais, outros menos, alguns nem consideraram que o que fizeram foi barraco, mas o revide, o não-silenciar, é quase instintivo, eu acho. Fica o estigma de barraqueira para quem tem mais frequência nesse lapso de “isso eu não vou deixar passar” ou para quem tem a manha de comprar barracos alheios.
O barraco é o recurso de quem só tem o peito e a voz para enfrentar uma situação injusta ou degradante, mas sabe que tem consigo uma comunidade com acordos sociais de justiça, ainda que eles pareçam ofuscados e fragilizados pelo massacre nosso de cada dia chamado capitalismo.
Mas tudo isso eu intuia sem colocar assim em ideias delineadas, até o dia em que eu estava passando de ônibus e vi uma pixação bem pequena, numa porta de metal dessas de correr. Parecia até escrito com branquinho ou canetinha. Dizia: seja barraqueira, seja heroína. Aí eu vi vantagem mesmo em ser barraqueira. Não é que eu queira me gabar nem nada, nem me envaidecer ou hypar, nem mesmo comercializar ou propagandear um dom. Eu quero é enaltecer o barraco, porque ele é fundamental para a nossa sobrevivência, tanto individual quanto social. Se ser barraqueira é não se calar, e não se calar é ser heroína, então esse pixo tá certinho.
Valha-me Anhangá!
Você que vê o rio
E quer canalizar
Anhangá vai te afogar!
Você que vê o peixe
E quer logo pescar
Anhangá vai te fisgar!
Você que vê bicho
E só pensa em matar
Anhangá vai te caçar!
Você que vê a mata
E quer derrubar
Anhangá vai te cortar!
Você que vê gente
E já quer explorar
Anhangá vai se vingar!
Você que vê curva
E quer retificar
Anhangá vai te emendar!
Você que vê terra
E já vem asfaltar
Anhangá vai te enterrar!
Você que vê público
E quer privatizar
Anhangá vem te buscar!
Você que está certo
De que nesse mundo
Justiça não há
Quando dormir
E começar a sonhar
Verá o implacável Anhangá.
Ele vem e não há de falhar
Quando ele assobiar
Não adianta correr
Não adianta implorar
Nem tente se esconder
Pois ele há de te achar.
Só o lixo prospera
Não paro de sentir saudades do tempo em que o mundo parecia ter futuro.
Tinha esse clima no ar.
Será que era porque eu era criança? Anos 1980, 1990. O país saindo da ditadura…
Os jovens pareciam mais saudáveis.
A Mata Atlântica tinha redutos de preservação. As matas preservadas tinham bichos. O microplástico não estava em toda a água do planeta.
Ainda existia uma ideia de liberdade, ou uma busca por corpos mais livres e leves.
Eu sentia o viver no mundo como se fosse sempre logo depois da chuva. O ar era poluído mas tinha seus momentos de frescor. O poluído ainda assustava.
Hoje o poluído é a regra e o ar puro é que assusta.
Tudo se esvaziou. O presente nada mais é que uma eterna sequência de agoras. Sem passado e sem futuro.
Tem quem ponha filhos no mundo e os crie.
Eu gosto de plantar.
Todas as sementes devem cumprir sua missão na terra, germinar. Mesmo que depois morram. Elas topam.
As sementes não escolhem o melhor lugar. Elas precisam lidar com o fato de que não podem se mover por conta própria. Onde calhar delas caírem, elas nascem. Se der, elas dão!
Isso eu entendo da vida.
Não importa se a vida da gente não é como uma árvore centenária.
Tem milhões e milhões de sementes que nascem e vivem pouco. Morrem jovens. Para elas, valeu. Mais vale viver pouco do que não viver.
Por outro lado…
Se a natureza é perfeita e levou milhões de anos para formar esse corpo fantástico.
Se a natureza é sábia e levou milhões de anos para desenvolver as plantas, os animais, os rios e o ambientes favoráveis à vida.
Por que morrem crianças e jovens?
Por que as árvores não vivem todas por centenas de anos?
Por que quase nada que não seja lixo prospera nesse mundo?
Por que, entre aqueles que vivem e podem seguir vivendo, há tantos que escolhem não viver?
Infinitar
Sempre que nos deparamos com uma concha grande, daquelas espiraladas (tão raras hoje em dia), nosso instinto mais primitivo é lavá-la à orelha.
Isso acontece porque as conchas têm a capacidade de criar infinitos…
Seja qual for o lugar ou situação em que a concha é levada à orelha, ela consegue nos levar para o mar, para o imenso e misterioso mar.
A capacidade de infinitar momentos da vida limitada é a magia inexplicável das conchas espiraladas, e o fato delas virem do mar não deve ser mero acaso.
A sensação de infinitação provavelmente vem do fato de todos termos vindo do infinito, e mais precisamente, no planetinha azul, do mar.
As conchas trazem consigo o infinito, porque carregam sua origem para onde quer que sejam levadas.
Elas não nos deixam esquecer nossa infinitude enquanto vida continuada, enquanto areia na praia e gota no oceano, enquanto pó de estrelas no universo que tem lá fora e aqui dentro.
Infinitar: ação que as conchas espiraladas realizam quando levadas à orelha e escutadas com atenção.
Quem descobriu o Brasil?
Essa cena aconteceu hoje. Eu a presenciei e juro que é tudo verdade.
Estavam em frente à biblioteca Mário de Andrade uma mulher em situação de rua dormindo e algumas mulheres tentando acordá-la para dar a ela uma sacola com alguma coisa dentro que parecia uma marmita.
A moça que dormia era negra.
As moças que doavam, brancas.
Depois de algumas tentativas de acordar a moça que dormia, deixaram a sacola e já iam partir quando, de sopetão, a moça acordou e lançou, energica e focadamente uma pergunta:
– Quem descobriu o Brasil?!
A mulher, que tentou avisar sobre a sacola que deixara, respondeu de pronto:
-Pedro Álvares Cabral!
A moça deitada emendou com um misto de doçura e sabedoria:
-Nããão, moça! Fomos nós, mulheres!
Preciso dizer que, ao ver aquilo, abri um sorriso gigante por dentro da minha máscara, em seguida me vieram lágrimas como um golpe de chuva numa tarde ensolarada de verão.