Deixamos de ser pobres quando nos organizamos

Que nosso sistema politico-econômico-ideológico está falido é certo, temos (quase) consenso em relação a isso. Muitxs dos que ainda não admitiram que o sistema tem que cair e outra forma de organização deve vir em seu lugar não o fizeram por não entenderem (ou acreditarem) que outra forma de se viver em sociedade seja possível. Mesmo aquelxs que lutam para que o sistema capitalista estadista caia ainda não sabem ao certo como seria esse outro mundo que estamos propondo. Nós também não sabemos, na verdade, ninguém sabe, mas, partindo do pressuposto de que o capitalismo está levando não só a humanidade, mas o planeta inteiro e todas as formas de vida nele existentes ao colapso, podemos pensar que pior que isso não parece plausível que fique. O anarquismo, em sua ética contrária à autoridade, à centralização, à hierarquização carrega consigo o antídoto da noção de erro quando escolhe a experimentação como forma de descoberta e conhecimento.

Mais do que fórmulas para se chegar a um determinado fim, pensamos em princípios, pontos de partida, para que muitos caminhos e muitos fins sejam possíveis. A importância da não representatividade surge pois, além de vivermos na pele a sua comprovação de ineficácia – pelo contrário – de perversidade, também podemos pensar que, em teoria, não funciona, pois a concentração de poder tende à concentração de poder, e concentração de poder = arbitrariedade, abuso, privilégios. Nunca ninguém saberá o que todas as outras pessoas precisam, porque a autonomia e a autodeterminação são premissas para uma vida digna e principalmente porque poder não se delega, ou somos políticos ou não somos, e então nos tornamos esvaziados, expropriados do poder sobre nossas vidas.

Quando pensamos em organização social acabamos por pensar nos termos do Estado-Nação que nos foram apresentados pela divisão geográfica nos mapas, com a ideia de território nacional, hino nacional, cultura nacional, língua nacional, constituição do país e seu governo. Essas fronteiras e delimitações são criações abstratas, apesar de sua consequência ser bastante concreta, mas para que tudo isso exista é preciso de uma ação legitimadora chamada “voto”. Essa tentativa de transformar o que é múltiplo e plural em único, uno, unificado, é feita à base de muita violência, etnocício, genocídio, injustiças, expropriações e de um exército nacional.

De saída já podemos pensar que o sistema é econômico e político (em sua base material) e que, para superá-lo, temos que pensar em duas frentes: a nossa organização e o nosso abastecimento. O sistema também é judicial – teremos que nos debruçar cuidadosamente sobre essa questão, mas isso daria um outro texto…

As ideias de organizações sociais mais justas e horizontais renegam a centralização e delegação de poder e se baseiam em reuniões horizontais de pessoas que têm algo em comum, sejam seus interesses, o lugar onde moram, suas profissões ou seus prejuízos. Murray Bookchin, em seu “Municipalismo Libertário” dizia que antes dos Estado-Nações a política era feita pela população em nível comunitário nas assembleias cidadãs diretas. Isso antes dos políticos se tornarem profissionais e burocratas.

Não é à toa que muitas ideias de novas formas de se viver em sociedade venham do passado, das tribos, das aldeias, das comunas. Essas sociedades não tinham a propriedade privada, não tinham transformado a terra em mercadoria, fato que determinou e determina toda a nossa forma de ver e vivenciar a terra e a vida na Terra.

Eis mais uma premissa: para uma que uma organização popular possa ser de fato popular, é preciso que não exista propriedade privada, nem estatal, pois o Estado também é um proprietário. Ser estatal não é o mesmo que ser público.

Mas para que uma organização popular possa ser eficaz é preciso que haja uma nova prática do ser político. Bookchin afirma que mesmo em uma organização que seja gerida a partir de assembleias diretas é preciso que o “cidadão” esteja em constante formação e discussão política. “Mas limitando a vida política unicamente às assemebleias cidadãs, corria-se o risco de ignorar a importância de seu enraizamento numa outra cultura política fértil feita de discussões públicas cotidianas, nas praças, nos parques, nas esquinas das ruas, nas escolas, nos albergues, nos círculos etc. Discutia-se política em toda parte, preparando-se para as assembleias cidadãs, e tal exercício cotidiano era profundamente vital.”

Avançando um pouco no tempo, existiram insurreições urbanas que procuraram se valer de assembleias para sua organização. Na contra-mão de uma cartilha, o Comitê Invisível questiona em seu notável “Aos nossos amigos” a figura suprema da assembleia na atualidade. “Em Oakland como em Chapel Hill, acabou por se considerar que a assembleia não tinha nenhum direito em validar o que este ou aquele grupo podia ou queria fazer, que ela era um local de partilha e não de decisão. Quando uma ideia emitida em assembleia vingava, era simplesmente porque um conjunto suficiente de pessoas a consideravam boa para lhe concederem os meios de a pôr em prática e não em virtude de qualquer princípio de maioria. As decisões vingavam ou não; elas nunca eram tomadas.” Esse questionamento surge porque a assembleia também tem implicações relativas às decisões e à centralização de poder. Essa lógica pode ser mudada se pensarmos nas assembleias como espaço de discussão muito mais do que de decisão, a princípio. Mas mesmo a assembleia pode ser questionada, o que ela representa não é uma forma engessada de organização mas um modo de as pessoas se encontrarem e, de maneira horizontal, dialogarem. Quando acontece um encontro depretensioso e disposto à ação de pessoas alinhadas em suas vontades e princípios, tudo é possível!

Mas porque tanta gente ainda se apega ao Estado como administrador da nossa vida? Seria porque não vislumbraram ainda como podemos gerir sistemas tão complexos, como a geração e distribuição de energia, a internet, a distribuição de água e alimentos, etc? Logicamente não há uma resposta pronta ou um plano para isso, mas alguns autores apontam soluções. Para Bookchin, “o fato para uma comunidade decidir de maneira participativa que orientação seguir numa dada questão não implica que todos devam saber como se concebe e como se constrói uma estrada. É o trabalho dos engenheiros, que podem apresentar projetos alternativos, e os especialistas desempenham, então, por isso, uma função política importante, mas é a assembleia dos cidadãos (e cidadãs) que é livre para decidir. A elaboração do projeto e a construção da estrada são de responsabilidade estritamente administrativa, enquanto a discussão e a decisão quanto à necessidade desta estrada, inclusive a escolha da sua localização e a apreciação do projeto, concernem a um processo político.”

Com isso observamos que a questão da organização política se mistura à administração e execução das decisões tomadas pelo conjunto.

Entendendo que umas das ações mais estratégicas de que o povo dispõe para lutar é o bloqueio (a ocupação, a expropriação ou a retomada do espaço) surgiu o termo “ocupar e resistir”. Seria interessante acrescentar um termo a este lema: “fazer funcionar para o povo”. Ou seja, para além de ocupar e resistir, há que se fazer a fábrica, a escola, a universidade, o transporte, o prédio funcionarem em função do coletivo, da comunidade.

O Comitê Invisível acredita que a administração e execução estão mais nas mãos do povo do que necessariamente dos técnicos, como defende Bookchin. “Por outras palavras: temos que retomar um meticuloso trabalho de pesquisa. Temos de ir ao encontro, em todos os setores, em todos os territórios que habitemos, daqueles que dispõem de conhecimentos técnicos estratégicos. É somente a partir daí que os movimentos ousarão verdadeiramente “bloquear tudo”. É somente a partir daí que se libertará a paixão de experimentar uma outra vida, paixão técnica em larga escala, que é como a inversão da situação de dependência tecnológica de todos.”

E quando pensamos na produção de coisas, logicamente associamos ao capitalismo a à necessidade de gerar lucro a existência de mais da metade dos produtos que existem hoje. A Coca-Cola vai deixar de existir? A Apple? O que podemos entender acerca da existência desses produtos depois da queda do capitalismo é que eles existirão na medida em que serão necessários a tal ponto de mobilizar pessoas para a sua produção. Podemos pensar também que a elitização da informação não existirá mais. Deste modo poderemos pensar em ter a receita da coca-cola acessível para quem quiser produzi-la em casa, ou que teremos acesso a como produzir nossa própria tecnologia de forma autônoma. Ou seja, poderemos, se realmente quisermos, produzir nossos próprios celulares e computadores, ou consertá-los. Podemos pensar que as fábricas serão cooperativadas, ou seja, que poderão sim produzir os bens que são úteis às pessoas, mas não a partir da lógica do lucro, da obsolescência programada, nem de um ritmo acelerado e desumano de trabalho.

Seria ingênuo pensar que um dia o capitalismo vai cair e então teremos o espaço necessário para realizar tudo isso que imaginamos. Os processos acontecem simultâneamente, de modo que devemos começar já, neste instante, a criação dessas formas outras de decisão, discussão, admnistração, produção e trocas!

E para ir além (ou aquém) da nossa necessidade de tecnologia, temos que pensar em nossas necessidades mais básicas. Práticas para sanar em rede essas necessidades são conhecidas em diversas partes do mundo, são as trocas e dádivas, que promovem a desmonetarização e auto suficiência! E para se pensar no agora, por onde podemos começar, olhemos para a terra e para o que precisamos de mais básico, vamos começar daí, pela terra e pela nossa comida. Quem planta colhe! Quem planta seu alimento fabrica seu dinheiro.

Que tal começarmos por uma horta comunitária?

Fontes:

Murray Bookchin . O Municipalismo Libertário.

Comitê Invisível. Aos nossos amigos.